Durante a minha infância e pré-adolescência, existiam quatro momentos do ano pelos quais ansiava.
O Natal, o Carnaval, o meu Aniversário e o Dia do Pão-por-Deus.
Hoje é dia 1 de Novembro, Dia do Pão-por-Deus, e por toda a cidade correm grupos de crianças, batendo às portas e pedindo a dádiva do Pão-por-Deus.
Nas Beiras, onde estive nos últimos dias e para onde me refúgio nos fins-de-semana prolongados do Outono à Primavera, manda a tradição que as crianças declamem algumas quadras dependendo do resultado da sua visita, ora para os que os contemplaram com alguma oferenda ora para com os que nem se sequer lhes abrem a porta.
"Bolinhos e bolinhós
Para mim e para vós
Para dar aos finados
Qu'estão mortos, enterrados
À porta daquela cruz
Truz! Truz! Truz!
A senhora que está lá dentro
Assentada num banquinho
Faz favor de s'alevantar
P´ra vir dar um tostãozinho.''
Quando os donos da casa dão alguma coisa:
"Esta casa cheira a broa
Aqui mora gente boa.
Esta casa cheira a vinho
Aqui mora algum santinho."
Quando os donos da casa não dão nada:
"Esta casa cheira a alho
Aqui mora um espantalho
Esta casa cheira a unto
Aqui mora algum defunto."
Já nas Caldas a quadra é outra:
"Pão por Deus,
Fiel de Deus,
Bolinho no saco,
Andai com Deus."
Nessas frias e cinzentas manhãs de 1 de Novembro dos anos 70, juntava-me com amigos, vizinhos de bairro, como o Paulo Bastos da Rua Leão Azedo e corríamos os prédios das ruas limítrofes. Como éramos tímidos, apenas batíamos à porta de pessoas conhecidas mas ainda assim, ou por essa mesma razão, conseguíamos encher o saco por uma ou duas vezes. O saco era um tradicional saco de pão, feito de pano-cru e com figuras e dizeres bordados a cores. Quando chegávamos a casa no final da primeira ou da última ronda, despejávamos para cima da mesa da cozinha o nosso espólio, geralmente composto pelos víveres tradicionais de quem não tem muito para dar ou de quem se esqueceu da data mas que mesmo assim não recusava o pedido das crianças. Maçãs, nozes, castanhas, ovos cozidos, alguns pinhões e figos secos. De vez em quando lá vinham também um punhado de caramelos espanhóis, daqueles embrulhados em plástico castanho e beije, compra tradicional das visitas a Badajoz. Quando hoje vemos as guloseimas que as crianças pretendem receber neste dia vemos o quanto éramos tão felizes com tão pouco. Porque o importante não era o que recebíamos mas a alegria do correr as portas, a alegria de receber algo com um sorriso dado por alguém com um sorriso.
Recordar o dia de Pão-por-Deus é recordar também a figura de Thomaz dos Santos, assim mesmo, escrito na grafia do seu tempo, é relembrar a mais marcante recordação daquele dia.
Thomaz dos Santos foi um dos mais ilustres empresários caldenses, daquelas figuras que forjaram a nossa cidade e que apesar de todo o seu património e de todo o tempo que tinha de reservar à gestão das suas empresas, fazia questão de nesse dia, se colocar a uma janela do rés-do-chão do prédio que ainda hoje é a sede da empresa que construiu, na Rua Capitão Filipe de Sousa, e daí distribuir moedas de 25 tostões (o que equivaleria com a correcção cambial a cerca de 1 euro aos preços de hoje) por todas as crianças da cidade que lá se dirigissem. E todas o faziam! Todas eram satisfeitas e a prodigiosa memória de Thomaz dos Santos evitava que alguns tentassem repetir o pedido pois ele conseguia decorar todas as feições e com um sorriso nos lábios recusava o pedido dos prevaricadores. Afinal, tinha que dar para todos!
Thomaz dos Santos entregava a sua moeda a cada criança com um sorriso de enorme satisfação e aposto que ele antecipava por dias aquele dia em especial. Que organizava aquela manhã com satisfação e até com alguma ansiedade, pedindo a algum colaborador que fosse ao banco levantar as moedas trocadas para que nada faltasse e dispusesse uma cadeira e uma mesinha junto àquela janela em particular.
Aquele seu sorriso guardava um segredo, um segredo que só desvendei na idade adulta.
Durante anos esperei ansiosamente por este dia e usufrui do ambiente de partilha daquelas manhãs como ninguém. Com o decorrer dos tempos deixei de ir bater às portas mas mantive o entusiasmo por este dia. Aos poucos e poucos comecei a desvendar o segredo.
Quando fui estudar para Lisboa e logo nas primeiras semanas, à medida que o dia se aproximava, comecei a questionar os meus novos colegas sobre esta tradição e descrevi-lhes o ambiente nas Caldas. Fiquei completamente surpreendido pelo facto de, salvo os que tinham familiares na província, desconhecerem esta tradição.
Tal como o Carnaval, o Dia de Pão-por-Deus passava despercebido na grande cidade.
Quando terminei o liceu e rumei a Lisboa levava uma enorme expectativa, finalmente iria para uma cidade que me poderia dar tudo por que ansiava. Afinal, e ao longo dos anos compreendi que as Caldas me poderiam dar muito mais do que Lisboa, bastava entender o que era essencial!
Esta é uma terra de afectos e as tradições como o Pão-por-Deus fazem parte da nossa identidade comum e esta é distinta da de Lisboa e de muitas outras terras. Aquilo de que senti a falta, o Dia de Pão-por-Deus, a Rua das Montras em véspera de Natal, os dias de Carnaval, são momentos de partilha de toda a população, de pessoas unidas pelas Caldas, quer se conheçam ou não. Ficamos unidos por esta alegria de viver esses momentos únicos na nossa cidade e é isso que nos fortalece enquanto caldenses. Algo que para um lisboeta seria impossível entender! Também, o que podemos esperar de uma cidade em que os seus habitantes não conhecem os seus vizinhos de prédio que com eles coabitam há vinte anos?! Chamam a isso privacidade!
Esta é uma terra de afectos e as tradições como o Pão-por-Deus fazem parte da nossa identidade comum e esta é distinta da de Lisboa e de muitas outras terras. Aquilo de que senti a falta, o Dia de Pão-por-Deus, a Rua das Montras em véspera de Natal, os dias de Carnaval, são momentos de partilha de toda a população, de pessoas unidas pelas Caldas, quer se conheçam ou não. Ficamos unidos por esta alegria de viver esses momentos únicos na nossa cidade e é isso que nos fortalece enquanto caldenses. Algo que para um lisboeta seria impossível entender! Também, o que podemos esperar de uma cidade em que os seus habitantes não conhecem os seus vizinhos de prédio que com eles coabitam há vinte anos?! Chamam a isso privacidade!
Na quinta-feira passada, sabendo que iriamos estar ausentes nos dias seguintes, os meus mais pequenos obrigaram-me a ir ao supermercado comprar uma pequena fortuna em guloseimas. Não queriam deixar de ter algo em casa para o Dia de Pão-por-Deus. Propositadamente encurtei um fim-de-semana que se esperava mais longo e regressei ontem de madrugada às Caldas para que as crianças pudessem viver este dia. Não pude deixar de me lembrar o quanto eu ansiava por este momento na sua idade!
Hoje, esquecendo-se da mudança da hora e porque ainda não tinha tido tempo de alterar os relógios cá de casa, acordaram e vestiram-se às sete da manhã, entrando pelo meu quarto a dizer que eram quase nove e que precisávamos de organizar as coisas!
Eram sete e meia da manhã e já estavam a colocar as guloseimas em pequenos cestos de vime que depositaram no hall de entrada. Estavam radiantes e ansiosos. Não pelo chegar da hora de irem começar a bater à porta dos vizinhos mas pela chegada das crianças a nossa casa. Tão novos e já começam a desvendar o segredo!
Às nove horas começou o corrupio de crianças a baterem à porta. Tive que expulsar os meus filhos de casa pois preferiam estar a entregar as guloseimas àquelas crianças desconhecidas do que irem, eles próprios, às casa vizinhas.
Ainda é cedo para eles! Terão tempo um dia para ficarem em casa a distribuir guloseimas e ver o sorriso de satisfação das crianças em vez de correrem a cidade. Terão tempo para compreender o segredo de Thomaz dos Santos!
O Dia de Pão-por-Deus começou, segundo a lenda, nos dias seguintes ao terramoto de 1755 que devastou a cidade de Lisboa e muitas outras povoações na província. O grau de destruição foi tanto que milhares de crianças encontraram-se, de repente, órfãs e abandonadas, desalojadas de abrigo e sem absolutamente nada de comer. Os poucos víveres que as tropas do Visconde de Oeiras (futuro Marquês de Pombal) conseguiam distribuir ficavam nas mãos dos mais fortes, e nestes não se incluíam as crianças. Assim estas começaram a bater às portas das casas que restavam de pé, pedindo comida.
- Dêem-me pão, por Deus!
O infortúnio foi tão grande que poucas semanas depois já era toda a população das cidades devastadas que se dirigiam às outras localidades pedindo que lhes dessem de comer!
Batem-me pela enésima vez à porta e eu mais uma vez tenho que interromper esta crónica. Os miúdos regressaram outra vez a casa e preferem estar a entregar os caramelos de frutas, os chupas-chupas e os pequenos chocolates às crianças que aparecem. O Francisco e a Maria revelam-se à altura da logística e distribuem com racionalidade as guloseimas. Terão que dar para todos. No ano passado, já no fim da manhã e quando as guloseimas acabaram, foram buscar do seu próprio saco para entregar a uns miúdos retardatários. Estão quase a perceber o segredo mas ainda é cedo para eles, agora é tempo de gozar a infância. Não queiram ser adultos antes de tempo!
Thomaz dos Santos criou a maior empresa das Caldas e nesse dia mostrava conhecer o segredo. Não se importava que o vissem com um sorriso nos lábios e com os afagos que dava no cabelo das crianças. Num país em que se cultiva a sisudez, em que esta é confundida com a competência fruto de uma longa linha de sisudos que nos marcou a história, Salazar, Eanes, Cavaco Silva, Ferreira Leite, Teixeira dos Santos, torna-se difícil que alguém com um sorriso nos lábios e que exprima afectos seja considerado competente. Já uma cara de quem todos lhe devem e uma rispidez natural no trato é meio caminho andado para se ser considerado competente!
E ali estava um dos maiores empresários da história da nossa cidade, partilhando os seus afectos com todas as crianças da cidade. E certamente sentia-se mais feliz nesse momento do que em qualquer outro em que recebia os resultados das suas empresas, pois ele guardava um segredo em si.
Ao longo da manhã, trazidos pela notícia que corre há anos, que o nosso bairro é de gente generosa e que aqui as crianças encontram uma, duas, dezenas de postas abertas, carros e carros vão chegando e literalmente despejando crianças na única rua que dá acesso ao bairro. Entretanto os pais refugiam-se nos dois cafés da rua e aguardam o fim da peregrinação dos miúdos. Nós ficamos felizes e até orgulhosos por esta tradição mas não evito perguntar:
E enquanto eles ali estão a aguardar que as suas crianças façam o pedido do Pão-por-Deus, quem está em suas casas para abrir a porta às outras crianças?
2 comentários:
Ainda recordo o sorriso feliz e prazenteiro do Sr. Thomaz dos Santos a distribuír moedas de 25 tostões e já lá vão 50 anos.
Só não concordo com a comparação com a moeda de hoje, e porquê? Porque ao tempo a sopa na cantina da Escola custava 10 tostões, sendo assim, os 25 tostões estariam hoje equivalentes a 2€, ou mesmo 2,5€. Obrigado por mais esta recordação de outrora.
Um abraço
A. Justiça
Gostei muito de ler esta 'memória'. só da cidade, tenho 23 anos e não conhecia a historia/tradição.
Lembrei-me de perguntar se por acaso nas caldas ainda se encontram casas que vendam os tradicionais sacos do pão, ou mesmo se conhecem alguma loja em Lisboa, pois onde resido não há alternativa ao (saco de) papel que todos os dias deitamos fora.
Obrigado
João
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