Nos jardins das traseiras da casa do Pedro e do Ricardo Ferreira serpenteava encosta acima um carreiro em cimento ladeado por pequenos muros.
Não demorou muito para que verificássemos ser o local ideal para fazermos as nossas corridas de carros de rolamentos pois as ruas e becos da cidade que ofereciam alguma inclinação eram-nos vetados pelos nossos pais e só em zonas com menos trânsito da Encosta do Sol o poderíamos fazer.
Contudo alguns de nós, mais afoitos, ainda conseguimos algumas façanhas como descer uma vez a Rua do Diário de Noticias, de frente da casa dos Ballu Loureiros até ao Bocage e irmos bater de chapa contra o vidro deste café sem o partir.
Outras descidas famosas eram a que vai hoje do Bairro Azul (julgo que na altura ainda não existia e eram as traseiras da cerca e do palacete do meu amigo Francisco ‘’Pimpas’’ Ferrari Sobral) pelo silo até ao jardim-escola e a do outro lado do silo, junto ao posto da EDP e do outro jardim-escola até ao cruzamento que é hoje a rotunda perto do Centro da Juventude.
Claro que parávamos sempre antes dos cruzamentos!
E a mais longa das descidas conhecia duas versões. Ou começávamos onde é hoje o lar do Montepio nas traseiras da escola comercial e terminávamos junto à Garagem Caldas (a partir daí para a Praça de Touros já era perigoso!) ou iniciávamos o percurso na Rua Ramalho Ortigão, no cruzamento que dá para as traseiras da escola primária da Encosta do Sol, descíamos pela Rua da Olivença e depois retomávamos o percurso anterior da Rua Alm. Gago Coutinho, ao longo dos muros da Escola Comercial até à Garagem Caldas. Na altura não existia a Rua Leonel Sottomayor (a do CCC) e as zonas de controlo eram menores.
As corridas de carrinhos de rolamentos nos pomares dos Ferreira tornaram-se tão famosos que vinham garotos de outros bairros competir connosco. O Ricardo por ser o mais leve ganhava a maioria das corridas e alguns de nós eram tão competitivos que não faltavam reclamações de condução perigosa, cotovelos levantados, ‘’chegas p’ra lá’’, e outras faltas técnicas.
Examinávamos minuciosamente os rolamentos dos adversários e a estrutura de madeira de cada carrinho para tentar perceber as razões das nossas derrotas e havia sempre um factor de vantagem que encontrávamos nos vencedores para justificar as nossas ‘’coças’’.
Por essa altura o grupo alargara-se e também o Miguel Crespo, o Ricardo Ramos, o Diogo Sampaio de Guimarães competiam encarniçadamente nas corridas quase diárias que disputávamos.
O Pedro começou entretanto a comentar que o primo Ernesto Arroz lhe estava a preparar uma máquina que seria imbatível. Parecia o Mário Andretti a falar do novo Lotus 79! Mas o tempo ia passando e o Pedro mantinha a velha prancha de madeira.
Mas um dia o bólide apareceu mesmo. Uma estrutura tubular em aço com rodas de carrinho de bebé, julgo eu. Bem, aquilo já não era um carrinho de rolamentos, era tão legal como o Brabham ventoinha do Niki Lauda no campeonato de 78!
Levámos logo uma abada e o carrinho teve que ficar apenas para exibições não competitivas a bem do interesse da competição.
E assim, eu e todos os outros passámos uns dois anos ocupados a tentar ganhar os campeonatos – que eram organizados aos pontos ou por sistema de eliminatórias em competição aos pares – e a tentar não perder as corridas o que daria logo direito a ter de comer de uma assentada uma das laranjas amargas (não, amargas era apelido!) de uma laranjeira muito especial que ficava junto à curva dois!
Foram dias e dias , manhãs e tardes bem passadas, desfrutando daquele tempo em que tínhamos todo o tempo do mundo e que parecia que o dia de amanhã não seria muito diferente do dia de hoje como não o fora do dia de ontem.
Até que um dia, o Miguel chegou a correr com a novidade. O pai acabara de lhe oferecer uma pequena moto que por ter menos de 50cm₃ poderia ser conduzido com uma simples carta de velocípedes. Corremos para a rua e olhámos extasiados para a pequena mini-Casal e para o capacete que o Miguel orgulhosamente ostentava.
Fizemos fila para dar uma volta com o Miguel e depois ele despediu-se para ir dar uma volta de moto com a Nini Gouveia e com o Jorge Magalhães, seus vizinhos de bairro.
Voltámos um pouco cabisbaixos para o jardim retomando os pequenos carrinhos de rolamentos.
Durante mais uns dias fizemos novas corridas já sem o Miguel mas parecia que o entusiasmo se esmorecera.
Com a ausência do Miguel e por causa da sua nova mota, os carrinhos pareceram-nos então uma brincadeira de crianças, que nós éramos… que nós fôramos!
E percebemos então que nada seria como dantes. Que as brincadeiras no jardim estavam a acabar e que o inicio de um novo ano lectivo, já no liceu do parque, nos levaria a uma nova etapa das nossas vidas e que com isso uma outra terminara.
A nossa adolescência ia começar!
Terry Jacks - Seasons in the Sun
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