Resumo do capítulo anterior:
Estamos na Páscoa de 1980. Os finalistas do Liceu das Caldas partem em excursão para Torremolinos. Mal chegámos e já estávamos a correr as discotecas da cidade. No regresso ao nosso apartamento em Benalmadena, descobrimos que a piscina do complexo está cheia e que uma das banhistas era a minha namorada do Verão de 1979. Ao debruçar-me para a beijar, o Filipe do Pó atira-me para dentro de água, todo vestido.
Parte 2
A Paula não consegue parar de rir com o meu mergulho e é assim que me apresenta às suas amigas. É assim, molhado e ainda dentro da piscina que as cumprimento. O Filipe afasta-se a rir, evitando receber o mesmo tratamento. Então a Paula convida-me a ir ao apartamento que divide com as amigas, na condição de eu ir primeiro trocar de roupa, claro.
Enquanto eu me dirijo para o meu apartamento na companhia do João Miguel Dinis e do João Gancho, conto-lhes a forma insólita como conheci a Paula.
Em Setembro do ano anterior, fui como era hábito então, na companhia da minha família passar umas semanas de férias à Torralta no Alvor. Comigo ia também o meu primo Bernardo.
Como chegámos tarde no primeiro dia, decidimos sair de casa muito cedo na manhã seguinte. Fomos directos para a piscina, mesmo junto à praia. Seriam umas 8h30 da manhã e a piscina estava aparentemente deserta. Na realidade, ao aproximarmo-nos verificamos que está um mergulhador, inteiramente equipado, com garrafa e tudo, a nadar no fundo da piscina.
‘’- Que coisa mais estranha’’- pensámos nós.
Vimos que estavam já três espreguiçadeiras montadas com colchão, uma estava ocupada com uma toalha e um saco de praia e deitámo-nos nas outras duas. Pouco depois, o mergulhador saiu da água e começa a tirar o fato.
Qual não é o nosso espanto quando de dentro do esponjoso vestuário sai uma ninfa com um biquíni super-reduzido e um corpo muito bem torneado para os 15, 16 anos que teria. Como nós!
Parecia a Ursula Andress a sair da água no Dr. No do James Bond! Só que em versão de cabelos castanhos!
A sereia, olha para nós com ar de que éramos transparentes e arrumou os artefactos, vindo-se deitar na espreguiçadeira onde deixara a toalha. Eu e o Bernardo ficámos mudos e quedos tentando olhar para todo o lado menos directamente para a menina.
Então a jovem deitou-se languidamente no colchão perante o nosso olhar meio disfarçado pelos óculos de sol, e ficámos a acompanhar a sinuosidade do seu corpo desde a pontinha da unha do dedo do pé até à madeixa clara que lhe cobria parte do rosto.
Depois tirou um livro do saco e ficámos mais aliviados quando vimos que era uma edição em francês de uma obra da Agatha Christie. A miúda era francesa ou belga, já podíamos falar à vontade!
E o que falámos, Mon Dieu! Como ela era isto e aquilo, como um de nós gostaria de a convidar a sair. Enfim, podem imaginar o tipo de conversa!
Entretanto a piscina ia enchendo-se de gente e por volta das 9h30 já estava a meia lotação e nós sem descolar a vista da nossa vizinha que pacificamente lá ia lendo o livro sem se dignar a olhar para nós.
Um pouco mais tarde, eis que chega uma senhora na casa dos cinquenta que se dirige à donzela. E não é que lhe começa a falar em português? Sem sotaque! Sem pinga de boulevards e de quartiers!
Ficamos para morrer! E mais ainda quando ela finalmente olha para nós directamente e nos lança um sorriso de gozo! Tinha escutado impávida e serena toda a nossa conversa. Nem sabíamos onde nos meter!
A mãe perguntou-lhe se queria ir com ela para a praia e ela olhando a sorrir para nós respondeu-lhe que não, que estava ali bem!
Minha Nossa Senhora!
Esperámos que a mamã fosse para a praia e um pouco a medo lá me meti com ela e devagarinho e apesar das suas respostas irónicas lá fomos partindo o gelo. Afinal tudo tinha uma explicação, o mergulho na piscina era para praticar a respiração com garrafa, pois estava a tirar o curso de mergulho lá na Torralta e não tinha autorização para ir sozinha para o mar. Recebera contudo permissão para praticar na piscina, antes da chegada dos utilizadores comuns. Quanto ao livro em francês, estava a praticar para o exame da Alliance Francaise que teria em breve!
Tudo explicado e nós ficámos expostos como um livro aberto. Mas afinal tudo correu bem, o Bernardo, já com a ajuda da Paula, conheceu nessa tarde, na piscina do Hotel D. João II, a Cristina, uma loirinha bailarina de ballet que iria nesse Inverno praticar para Londres e logo combinámos sair nessa noite. O pior foi quando fomos buscar a Paula ao seu apartamento e a mãe nos diz com o ar mais sisudo do mundo:
- Eu deixo-a sair mas é porque tenho muita confiança nela! A vocês não vos conheço de lado nenhum! – mal sabia ela a missa à metade!
Bem, estou a divagar!
Lá ia eu com os meus amigos a caminho do nosso apartamento para mudar de roupa.
Chegámos ao apartamento e esperava-me uma surpresa, o meu quarto estava ocupado e só faltava ter uma placa de NOT DISTURB pendurado na porta! Logo na primeira noite?! Chiça que o rapaz é rápido!
Mas eu tinha mesmo que trocar de roupa pois estava encharcado da cabeça aos pés! Então, como quem não quer a coisa, fui entrando de mansinho, pedindo mil desculpas, quase dizendo para continuarem e fazerem como se eu não estivesse ali, essas coisas que dizemos quando não queremos incomodar, e fui buscar uns jeans e um pólo, tentando sair o mais rapidamente possível o que não foi fácil considerando que ainda não tinha desfeito a mala.
Quando saí do quarto e perante o gozo dos outros, dou-me conta que não tinha trazido os sapatos, tive que voltar outra vez!
- Desculpem lá! Esqueci-me dos sapatos!
- %&$#(/%$#=!)O#”!!!!
- Pois, tens razão! Mas que queres, esqueci-me, pronto!
Já ia porta fora de novo, quando ouço de lá de dentro.
- Vê lá se não te esqueceste de mais nada?
‘’Shit! Esqueci-me da roupa interior!’’
A rapariga rebolava-se de riso, tentando já com pouco esforço esconder a cara. Vi que me era completamente estranha! Conquista de primeira noite em Espanha. O rapaz era mesmo maganão!
Lá voltei uma terceira vez ao quarto e tentei encontrar no meio da mala, na quase completa escuridão, as peças de roupa que me faltavam.
Finalmente consigo me vestir e parto para o apartamento da Paula. Com o meu quarto ocupado peço-lhe guarida e é no meio de 5 raparigas desejosas de ouvir as nossas estórias que passo a noite. Parecia eu no Colégio de Santa Clara ou das Quatro Torres (leiam Enid Blyton, um clássico!)!
No dia seguinte, com um par de horas mal dormidas, consigo finalmente entrar no meu quarto e dar um arrumo às coisas.
Decidimo-nos a ir jogar ténis nuns courts de piso sintético que víramos na véspera junto à marginal.
O piso é afinal de cimento e muito abrasivo, dou cabo das solas das minhas novas Sanjo num instante. Vou ter que comprar umas sapatilhas novas!
Nessa tarde decidimo-nos a ir a Málaga ao El Corte Inglês. Vamos a Torremolinos apanhar o autocarro e chegamos mesmo em cima da hora da partida. Com isso não comprámos bilhetes, habituados que estávamos a comprá-los dentro do autocarro na carreira para a Foz.
Quando aparece um revisor, foi uma festa tentando escapulir para as traseiras. Felizmente nenhum de nós foi apanhado, entre os rapazes ia eu, o João Miguel, o Rafael, o João Gancho, o Paulo Lemos, a Isabel Marques e alguns outros.
Ao chegarmos a Málaga temos a primeira certeza. Tinha havido uma ameaça de atentado pela ETA e os arruamentos em redor do Corte Inglês estão barricados e isolados pelos militares. Temos de dar uma grande volta para entrar nos armazéns.
Eu sigo directo para o piso do vestuário para homem e decido-me a comprar (final da década de 70, o que é que querem!) umas jardineiras de bombazina brancas, a grande moda em Torremolinos! Só tem um problema, estão grandes e é necessário fazer a bainha mas para isso teria de as deixar para o dia seguinte. Nem pensar! Arranjarei quem as faça entre as minhas amigas. Depois vou ao piso do calçado para comprar umas substitutas para as minhas sapatilhas desfeitas e hesito entre umas John Smith e uma Converse All Stars, no final acabo por comprar umas sapatilhas espanholas todas brancas e sem cano que ligariam muito bem com as jardineiras.
Jardineiras brancas, t-shirt branca e sapatilhas brancas, vou parecer o homem dos gelados! Imaginem o efeito sob a luz negra das discotecas!!! Um horror!
É neste ponto que eu tenho de fazer uma tradução para os mais jovens. Aqui nas Caldas e nos anos 70 e 80 ‘’sapatilhas’’ significavam ‘’ténis’’ e ténis era apenas um desporto!
Nisto começamos a ouvir uma enorme gritaria (literalmente!), a ver uma grande algazarra e dezenas de jovens a correr para as escadas rolantes que levam para baixo!
Pensamos que é uma ameaça da ETA, mas não ouvimos nenhuma explosão. Será que disseram alguma coisa nos altifalantes que nós não percebemos?!
Afinal de contas, espanhol cerrado não era a nossa especialidade e nós não tínhamos aquela apetência para línguas que demonstrava a avó dos meus amigos Ricardo e Agnello que com mais de 80 anos ainda fazia uma viagem anual com as amigas e julgava saber todas as línguas. Ia a Inglaterra e agradecia com um ‘’Obrigadation’’, em França dizia ‘’Obrigadacion’’ e por aí fora!
Uma vez, neste mesmo Corte Inglês de Málaga, chamou a balconista e disse que pretendia um ‘’casaquito cinziento’’ (chaqueta gris em espanhol), a empregada dizia-lhe que não entendia, perante o ar de espanto e indignação da senhora que só conseguia articular ‘’não intiendo, não intiendo’’, até que a empregada decide chamar o supervisor que ouve as primeiras palavras da avó dos meus amigos ‘’
- Sabe, estou mui embaraçada (grávida em espanhol), porque ninguém mi intiende!’’. - O homem fica a olhar para a velha de oitenta anos e tentar perceber como é que poderia estar ‘’muito grávida’’.
Bem esta e outras estórias da avó , que ainda conheci com a sua bengala, contadas pelos netos, são de ir às lágrimas!
Então estávamos nós em alerta máximo perante a histeria que enfrentávamos e decidimo-nos a seguir a multidão de jovens até ao piso 0.
Afinal era a grande estrela da canção espanhola daquele Inverno que estava na zona de discoteca a dar autógrafos. Pedro Marin de seu nome. Os seus êxitos ‘’Aire’’ e ‘’Que No’’ eram passados pelo menos umas três vezes por noite nas pistas do Piper’s. Dois meses depois, em pleno Verão português haveria de atingir também aqui o primeiro lugar do top de vendas!
Não se riam, afinal tinha sido apenas há 3 anos que o Art Sullivan cumprira a mesma proeza e enchia os estádios de Portugal com 40.000 pessoas a ouvirem "Ensemble", "Petite Fille Aux yeux Bleus", "Donne Donne Moi" e "Petite Demoiselle"!
Anos 70! Nem todas eram ‘’músicas intemporais’’!
As miúdas espanholas estavam verdadeiramente histéricas, só tinha visto uma cena daquelas nos antigos documentários sobre os Beatles. Resolvemos então participar na festa e começámos a gritar também, a puxar das camisas e dos cabelos. As amigas que estavam connosco alinharam na fita e fizeram igualmente a sua parte, com o pobre do Pedro Marin de sorriso de orelha a orelha a acreditar na genuinidade da nossa emoção. Saímos de lá com autógrafos nos braços e a jurar que nunca mais tomariamos banho para que o autógrafo não saísse!
Ao voltarmos decidimos tentar a sorte e não comprar bilhete. Apenas as raparigas não quiseram arriscar e quando o revisor apareceu foi o bom e o bonito para conseguir ir passando os bilhetes de mão em mão sem que ele o detectasse. Julgo que o João Gancho ainda foi apanhado e teve que pagar uma multa!
Ao chegar ao apartamento, encontro o maganão com um amigo e duas meninas, uma é a da véspera. Comento que tenho de arranjar quem me faça a bainha das calças e ela oferece-se com um olhar matreiro para ir comigo ao seu apartamento tratar do assunto. Estou mesmo a ver, eu vestir e a despir calças sozinho com ela. Não obrigado! Amigas dos meus amigos são irmãs para mim! (diz a raposa à lebre!)
Lembro-me então que a Margarida Arroz é a rapariga mais prevenida que eu conheço, às vezes até ao exagero o que nos levou a troçar com ela pela quantidade de medicamentos e a caixa de costura que levara para Torremolinos. Afinal acabei por necessitar dela para ambas as situações!
Vou com o João Miguel ao seu apartamento que divide com Teresa Lamy e mais algumas amigas.
Como sempre, a Margarida recebe o meu pedido com o seu ar maternal e dispõe-se à tarefa! Contudo fico espantado em ver algumas das meninas, a Margarida Nascimento, a Goretti, a Maria João, já aperaltadas cheia de enchumaços e leggings (anos 80!) enquanto outras se atropelam na cozinha.
Enquanto espero que a Margarida me faça as bainhas, fujo para a cozinha e começo a rapar a forma de massa crua de um bolo. A Teresa dá-me com a colher de pau nas mãos e tenta me afastar da cozinha.
Fico completamente fulo quando soube que estavam a preparar um jantar para oferecer a um grupo de Torres Vedras, o Zé Manel Bota-Fora e seus amigos, que tinham conhecido umas semanas antes no Green Hill.
A nós, aos seus amigos de sempre, nunca nos tinham oferecido nenhum jantar, nem nas Caldas nem em outro lugar qualquer! Francamente!!!
Saio do apartamento com as calças arranjadas mas a reclamar aos quatro ventos! Quando os outros sabem da história ficam igualmente fulos e esperamos encontrá-las à noite na discoteca para cravá-las para um jantar logo no dia seguinte!
Esperamos toda a noite no Piper’s mas elas não aparecem. Foram para outra discoteca, pensamos nós ainda mais irritados!
Só no dia seguinte soubemos o que se passou.
O leite que tinham levado estragara-se com o calor do autocarro na viagem para Espanha e tinha servido para fazer o leite-creme que era uma especialidade da Margarida que com o trabalho que teve comigo e a pressa, nem notou que o leite azedara!
No dia seguinte ninguém do grupo foi avistado nas imediações das discotecas. Os rapazes agarrados às calças e as raparigas com vergonha de os encontrar.
Deus não dorme!
(continua)
Calle San Miguel
Pedro Marin - Aire
Pedro Marin - Que No (audio)
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