quinta-feira, 10 de junho de 2010

A CAMINHO DA ADOLESCÊNCIA - A OESTE DO OESTE DA EUROPA


Lembro-me de sair de casa, na Rua do Jardim e ver o Chico Cera a namorar da rua a Anabela que só podia ir à janela para namorar e dos Bonécios, o João e a Fátinha a saírem desse prédio. Lembro-me do sapateiro no fim da rua, gordo e forte como um touro, que um dia doara sangue para a minha mãe. Lembro-me da drogaria à frente do meu prédio e da alegria da proprietária quando o filho regressou da Guiné. Lembro-me dos Rolins a namorarem ao cimo da rua e da empregada de farda a sair da pensão com as lancheiras empilhadas num portador ao domicilio.
Lembro-me da escola da D. Perpétua, na Rua do Jardim e do temível quarto escuro. Lembro-me que ao lado ficava a casa dos irmãos Albuquerque, já idosos e de quem se dizia serem descendentes do famoso Mabilio de Albuquerque. Lembro-me da taberna a meio da rua com as portas de batente e as pipas por trás do balcão.
Lembro-me de ir pela Leão Azedo, passar em frente da casa dos Costa, do Zé e da Anita com os seus 8 filhos, Ana Maria, Ião, Manuela , Filipe, Lóló, Bébé, Miguel e Kika. Lembro-me de acenar ao Paulo Bastos e de ir brincar com o Pedro Pires usando os chapéus da farda de gala do seu pai, comandante da GNR.
Lembro-me de levar uma maçã do expositor da ZáZá uma frutaria que ficava na esquina em frente ao Montepio. Lembro-me de entrar na loja Albino das Solas e perguntar pela Bibú para irmos juntos para a escola. De dizer-me que a Bibú estava com a Bé, sua mãe, na sua Boutique Camaroeiro, na Filipe de Sousa. Lembro-me de passar junto ao muro que dava para o pátio e pomares das traseiras da minha avó Mimi onde brincava com as Canela Lopes, a Isabel, a Luisa e a LaiLai, com o Zé Manel Mota. O iate de madeira, um vaurien azul escuro, ainda lá estava, a apodrecer no pátio. Lembro-me de me encontrar com a Bibú e de aparecer o Jorge Humberto, um ano mais velho, que nos fez companhia até à escola.
Lembro-me de passar as recauchutagens, de cumprimentar o Sr. Faustino e o pai do João Carlos Marques.
Lembro-me de entrar na Escola.
E de que te lembras tu?

Foi o tempo de amizades que desapareceram no tempo, o Eduardo Mago dos Reis e o Zé Paulo, o seu irmão, a Marina, a Isabel Prego, a Anita Antunes, o Jesuino, o Madruga, o Botas, o Sancho, o João Paulo e a Teresa Ascenso, a Leonor Raposo e a irmã - que ainda me acompanharam na adolescência - e tantas outras caras de que me recordo e cujo nome perdi. Foi o tempo das batas brancas e das fitas no cabelo.
Lembras-te das aulas de Matemática do Prof. Lalanda e do Prof. Baptista? Da exigência em Português do Prof. Saraiva e da nossa expressão de alivio ‘’Alimpa-te Saraiva!’’. Um professor a que devemos agradecer a formação que nos deu? Lembras-te da doçura da Profª. Antonieta de História, e da seriedade da Prof. Maria José de Ciências Naturais?
Lembras-te da mãe do João Paulo Ascenso a dar aulas de Desenho e do Prof. Mateus e da Ana Maria Vieira Lino (que linda que era!) a ensinar-nos a fazer fantoches com pasta de papel?
Lembras-te do Je Commence? Do Mr. e Mme. Dupont? do Je suis Nicole, Je suis Robert. C'est Papatapouf, Patapouf est un chien?
Lembras-te do Mestre Mamede e do Padre Zé Maria?
De que te lembras tu?

Lembras-te de colocarmos umas batatas a entupir os escapes dos carros dos professores do Conselho Directivo?
Lembro-me da minha timidez com a Profª. Aurilia nas aulas de francês por ser mãe da Teresa, mas nunca a deixar de a cumprimentar, na escola, na rua e em sua casa, com um ‘’Bonjour Madame!’’ fosse de manhã, à tarde ou à noite!
Lembro-me desta nos deixar de dar aulas no 2º ano do ciclo porque a sua filha Teresa transferira-se para a nossa turma e considerar que seria pouco ético ser professora e avaliar a sua própria filha!
Lembro-me das tardes passadas em casa da Margarida Arroz com a Júlia (Ó Júlia Florista!) e das tardes passadas em casa da Teresa com a sua empregada e de metermo-nos com esta por causa das suas fotonovelas Capricho, Ilusão e radionovela Simplesmente Maria. (e de lermos aquele livro, lembras-te Teresa?)
Lembro-me de pagar 5 tostões ao Jorge Bandeira Duarte para acompanhar a casa a Margarida Arroz, minha namorada do 2º ano, porque lhe ficava em caminho na Encosta do Sol.
Lembro-me do Paulo e do Manel Tuna , do Quintino e dos Marques, do Gamela, da Ana Paula e do Fernando Paulo Duarte do grupo que vivia na encosta do Sol. Do Miguel, da Isabel e da Patricia Ballu Loureiro.
Lembro-me de ter feito um trabalho ‘’jornalistico’’ com o Quim Franco sobre a remoção da estátua do Marechal Carmona em que andámos dias a fotografar a estátua de vários ângulos, incluindo do cimo da torre da igreja no momento em que os sinos começaram a tocar e por isso ter ficado surdo por um dia! De ir de gravador a tiracolo e microfone na mão, entrevistar os soldados que faziam guarda à estátua enquanto se discutia a sua remoção e ter aprendido tudo sobre o manuseamento de uma G3.
E tu, de que te lembras?

Lembras-te de jogar à barra e gritarmos ‘’Fogo’’ só para ver todos a correrem de uma vez e tentarem apanhar o lenço.
De jogarmos ao ‘’Aqui vai alho!’’ com oito ou dez dos nossos?
Lembras-te de fazermos uma roda, sentados no chão, rapazes entre raparigas, enquanto uma corria em volta com um lenço na mão, cantando:

No alto daquela serra
no alto daquela serra
está um lenço
está um lenço a acenar

Está dizendo viva viva
está dizendo viva viva
morra quem
morra quem não sabe amar

Do outro lado do monte
do outro lado do monte
tem meu pai
tem meu pai um castanheiro

Dá castanhas em Outubro
dá castanhas em Outubro
uvas brancas
uvas brancas em Janeiro’’

Lembras-te de um dia de chuva intensa e de enchentes e de termos que arranjar forma de trocar de roupa, encharcada pela travessia com água pela cintura, junto à Garagem Caldas?
Lembras-te do aluno que morreu ao cair de um dos telheiros com painéis de acrílico que ficavam junto ao ginásio e à sala de aulas de Coral e da angústia da sua irmã e do nosso desespero por nada podermos fazer? O sermos confrontados com o fim de uma vida pela primeira vez?
Lembro-me do Botas a dar 80 voltas ao circuito de atletismo e da minha equipa de basquetebol ‘’Os Invenciveis’’ da Turma A vencer os ‘’Dragões Vermelhos’’ da Turma B capitaneados pelo Eduardo Mago dos Reis.
Lembro-me do Dia da Espiga e das primeiras eleições para a Assembleia Constituinte com as urnas instaladas na escola. Lembro-me do pai da Nini Velhinho ser o primeiro Presidente da Câmara após o 25 de Abril, de forma provisória, antes das primeiras autárquicas .
De que te lembras tu?

Lembras-te do bar no rés do chão, num canto do hall situado a seguir ao vestuário? Lembras-te do sabor das arrufadas de coco que comiamos no intervalo grande?
Lembras-te de comermos em self-service no ginásio ao almoço?
Lembras-te da construção dos pavilhões e dos murais que pintámos no 1º aniversário do 25 de Abril?
Lembro-me do Mini do Té e do BMW artilhado de uma professora que era linda e loura como a outra professora, Clara de nome.
Lembro-me da primeira RGA no 2º ano e de nem perceber ao que ia.
Lembro-me sobretudo da confusão que me fazia ter uma aula em cada sala após anos na mesma sala do Colégio.
E tu, de que te lembras?

Lembras-te da velha professora de Canto Coral a ensinar-nos solfejo e hinos nacionalistas e da Mocidade Portuguesa antes do 25 de Abril?
Lembro-me da letra de um desses hinos e da quadra inicial de um outro:

A oeste da Europa
Mesmo junto ao oceano
Fica o nosso Portugal
Lindo Torrão Lusitano

É pequeno em continente
Em domínios o terceiro
O mais valente na guerra
Em descobrir o primeiro

Dos portugueses valentes
Reza a velha história
Contra mouros e castelhanos
Alcançam sempre a vitória

Nos mares abrem caminhos
Em todas as direcções
Mostrando novos rumos
Às conhecidas nações

Sinto orgulho de ser filho
De tão formosa nação
Tão bonita, tão bonita
Que a trago no coração

Sinto orgulho na minha pátria
Mas não por causa mesquinha
Sinto orgulho na minha pátria
Porque é minha, muito minha!

Ou ainda:

Minhas botas velhas cardadas
Palmilhando léguas sem fim
Quanto mais velhinhas e estragadas
Quanto mais vigor sinto em mim…

Sabiamos lá nós com dez anos de idade o que era a Mocidade ou o Estado Novo!

De que nos lembramos nós?


Lembram-se?

Quis saber quem sou
O que faço aqui
Quem me abandonou
De quem me esqueci
Perguntei por mim
Quis saber de nós
Mas o mar
Não me traz
Tua voz.
Em silêncio, amor
Em tristeza e fim
Eu te sinto, em flor
Eu te sofro, em mim
Eu te lembro, assim
Partir é morrer
Como amar
É ganhar
E perder
Tu vieste em flor
Eu te desfolhei
Tu te deste em amor
Eu nada te dei
Em teu corpo, amor
Eu adormeci
Morri nele
E ao morrer
Renasci
E depois do amor
E depois de nós
O dizer adeus
O ficarmos sós
Teu lugar a mais
Tua ausência em mim
Tua paz
Que perdi
Minha dor que aprendi
De novo vieste em flor
Te desfolhei...
E depois do amor
E depois de nós
O adeus
O ficarmos sós

Lembram-se de tudo o que se passou depois? Como fomos atirados para a nossa adolescência?


Mas lembro-me sobretudo de não perceber depois o que se estava a passar. De não perceber porque tudo era tão importante que levava famílias a separem-se, casais a divorciarem-se, irmãos de costas voltadas, amizades de uma vida a terminar. Porque é que quando o desejo de liberdade de cada um era genuíno e solidário, se criava uma tremenda muralha de ódio apenas porque se divergia no caminho a seguir.
Lembram-se da beleza das palavras e da melodia?

Ontem apenas
fomos a voz sufocada
dum povo a dizer não quero;
fomos os bobos-do-rei
mastigando desespero.

Ontem apenas
fomos o povo a chorar
na sarjeta dos que, à força,
ultrajaram e venderam
esta terra, hoje nossa.

Uma gaivota voava, voava,
assas de vento,
coração de mar.
Como ela, somos livres,
somos livres de voar.

Uma papoila crescia, crescia,
grito vermelho
num campo cualquer.
Como ela somos livres,
somos livres de crescer.

Uma criança dizia, dizia
"quando for grande
não vou combater".
Como ela, somos livres,
somos livres de dizer.

Somos um povo que cerra fileiras,
parte à conquista
do pão e da paz.
Somos livres, somos livres,
não voltaremos atrás.



Hoje, olhando para trás e vendo os anos que se perderam de inimizades, de rupturas de famílias e perdas de amigos e agora que vivemos num clima de maior compreensão pela opinião dos outros e em que o valor da família, da amizade, do humanismo e das causas sociais se sobrepõem às divergências politicas, pergunto-me se terá valido a pena essa cisão que durou anos. Se para alcançarmos aquilo que somos hoje teríamos que passar pelo purgatório da intolerância.
Eu sei que não, a importância da família e dos amigos é demasiada para poder perder um dia que seja da minha vida sem eles.

E disso eu não vou nunca me esquecer!


Dedicado a todos os que viram mais além.


Paulo de Carvalho - E Depois Do Adeus



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