segunda-feira, 21 de junho de 2010

CANELEIRAS E PROTECTORES A CAMINHO DA PRIMÁRIA


Nasci em Setúbal só por acaso, e porque a minha mãe era lá professora primária. Estava para ir nascer a Évora, cidade onde viviam os meus avós, mas ao que parece, acelerei a chegada.O meu pai tinha chegado há um ano do Ultramar, e à data, estava provisoriamente colocado em Lisboa, na Direcção Geral de Educação . Também era professor primário.

Pouco tempo depois de eu nascer, abriram os concursos anuais de colocação e pôs-se a questão de para onde concorrerem ambos, ao abrigo de uma coisa que infelizmente para os professores já não existe : a “Lei dos Cônjuges”.

O meu pai era aventureiro e gostava de desafios. Também gostava (e gosta), do mar bravo. Contou-me que estendeu o mapa de Portugal em cima da mesa e escolheu as Caldas da Rainha, porque lhe agradou a proximidade com as praias. Nunca tinha lá ido.

Chegámos em Julho de 1970 e eu tinha 6 meses. Morámos perto de dois anos no nº 16 da Rua Formosa e depois passámos para a Rua Heróis da Grande Guerra, 169. Da Rua Formosa ficou-me uma amiga para a vida, a também formosa Ana Teresa Gomes (Vasconcelos), e os meus padrinhos, que ainda hoje e já velhinhos por lá continuam.A Sílvia (agora Goulão), mais nova que eu dois anos, também lá morou, na casa em frente aos meus padrinhos, e também respondia por Sissi, motivo pelo qual ficámos a “Sissi grande” e a “Sissi pequena”.

Aos 4 anos, e porque os meus pais acharam que eu devia conviver mais com outras crianças e sair debaixo das saias da empregada, entrei no Ramalho Ortigão, onde tive como Educadora a carinhosa D. Vicência, mãe dos Cordeiro.

Ao que parece aguentei um mês, por total e completa incompatibilidade com as sestas obrigatórias em catres de lona e almofadinha pequena, com cobertores de “picos” a acompanhar o sacrifício. Lembro-me do recreio, e de um túnel em cimento colorido, que servia para nos metermos lá dentro e quase sufocar se estava um à frente e outro atrás, género versão nível um dos treinos nos Comandos, e de mais umas quantas “diversões” coloridas.

A D. Vicência (a quem agora presto merecida homenagem ), não conseguiu acalmar a ira na hora das sestas, e eu não me fartei de berrar por casa e pela Isabel, a nossa empregada, outra santa que tinha uma pachorra de “jó” quer para me pôr a comer (tarefa difícil ao que parece), quer para me entreter nos desvarios.

Acabei por levar a minha avante e fiz a pré-primária em casa. Como queria muito ler para ver se não me enganavam nas histórias, contaram-me os meus pais que ao tentarem aplicar o “Método Global” para a leitura, em vigência nas escolas primárias em 74/75, e depois de muito livrinho com as letras ilustradas por objectos e animais, tipo: “G” - e por baixo o desenho da Galinha, um dia olhei para um saco de plástico da GOIA, à data laranja e preto e li: “Goia”.

Depois fui para a primeira classe ainda não tinha 5 anos, para não ser esperta. Adeus remanso de casa, adeus Isabel, que de mãos à cinta argumentava com os meus pais que “coitadinha da menina, que é tão pequenina, ainda lhe fazem mal, e tão bem que estava aqui comigo". Eu, no fundo, também achava o mesmo, mas queria aprender “coisas”.

A principio, e porque ainda não tinha idade legal para frequentar a primeira classe, fiquei na escola do Avenal, onde os meus pais eram professores, com a Professora D. Leonor, a segunda santa da minha vida escolar. Era só para ocupar umas horas e começar a brincar com as letras, mas a verdade é que a brincar com as ditas, passei para a segunda classe. E o que se ganhou com isso é que tive de repetir a terceira, porque andava um ano e tal à frente dos outros e porque muito jeitinho para ler e escrever, mas a aritmética era mais ver os números a passar. Infelizmente até hoje….

Saí da escola do Avenal, onde era protegida por todos e onde me ensinaram a andar de bicicleta sem “rodinhas”, para a malfadada terceira classe no Bairro dos Arneiros, onde o meu pai tinha sido colocado esse ano. Estávamos em 76/77. E azar, dos azares, não me lembro do nome da Professora. Talvez porque percebeu logo que a “esperta” não fazia os trabalhos de casa de aritmética e olhava para o lado quando se faziam os exercícios na aula. Talvez porque as idas ao quadro eram verdadeiros suplícios e as queixas da Senhora ao Professor da sala ao lado (o paaaiiiiizinhoooooo) eram recorrentes. Bom…As suficientes para em consciência decidirem pai, mãe e professora a repetição da terceira, até porque eu nunca poderia entrar para o ciclo ainda com 8 anos. Isto de ser de Janeiro, e de ter tido pais professores tem que se lhe diga…

Ficou-me da passagem pelos Arneiros outra amiga para a vida, a Vanda Belo, aluna do meu pai e companheira de aventuras espaciais, atendendo a que as nossas diversões no recreio passavam por cada uma de nós riscar no chão uma enorme circunferência (as naves), escolhermos as “crews”, e partirmos rumo a uma longínqua constelação. Eu costumava ser a Dra. Helen, e ela o Capitão John. O tema era o “Espaço 1999”, claro...

Vira-se novamente o disco, adeus Arneiros, e lá fui eu para a segunda terceira classe na “Escola Mais Bonita das Caldas da Rainha” – a primeira de todas, em frente do Parque de Campismo à entrada das Caldas.E começou o sabor a independência; ia sozinha, saída da Rua Heróis da Grande Guerra, logo de manhã cedo, a bater os protectores das botas caneleiras pelos passeios, e a parar nas várias capelinhas para seguir em grupo para a Escola. Os companheiros eram a Maria João (neta do dono da Goia), que morava perto da Praça do Peixe e o Gustavo Caridade que nos “apanhava” vindo de perto dos Bombeiros. Havia mais que se juntavam à pandilha, mas não consigo agora recordar os nomes…

Com o Professor Lemos, dono da papelaria Pelicano, (onde se iam comprar os livros escolares e aqueles mapas de Portugal lindos de morrer, hiper coloridos, que depois se plastificavam), chegou a época da “responsabilização escolar”, palavras usadas lá em casa e demasiado complexas para mim e para a Isabel, que achou desumano a menina ir sozinha e a pé para tão longe. Eu adorava!..

Pouco tempo a seguir, a Isabel desistiu de argumentar e saiu de nossa casa para casar com um “embarcadiço” de farto bigode loiro e olhos azuis, que em tempo de licença, a costumava ir namorar algures entre a garagem dos Claras, e a esquina da Jornália, ali rés-vés com as traseiras do Montepio, onde por vezes apanhavam um cortejo fúnebre que a Isabel aproveitava para depois comentar até à exaustão.

Pois…É que também faz parte da minha infância, saber sempre o nome, e muitas vezes a história dos defuntos….Já para não falar da indumentária que levavam para a última morada, atendendo a que a vista da varanda da minha casa incidia directamente para a casa mortuária do Montepio…Mas era uma belíssima varanda e a casa era magnífica!

Bom…A segunda terceira classe fez-se já sem a protecção paterna, e seguiu-se a quarta entre jogos da “macaca” no pátio de chão de terra batida, biqueiradas e correrias. Lembro-me também de levar a merenda num cestinho de vime, comprado na Praça da Fruta, depois substituído por uma lancheira moderníssima a imitar um “School Bus” americano, oferecida por uma prima residente no Canadá e que fez a inveja das amigas.Mas a aritmética foi sempre um osso duro de roer…

Foi com o Professor Lemos que ganhei o gosto pela História de Portugal, que ele sabia contar ao jeito de “estória” e foi pela mão dele que percebi o significado de “responsabilização escolar”. Literalmente….

E ainda outro dia, de visita a Marrocos, no meio do entrincheirado da Medina de Marraquexe , sorri ao deparar-me com uma casa de banho de “buraco”, ideal para treinar o estilo “cócoras” exactamente igual à que tínhamos na “Escola Mais Bonita das Caldas da Rainha”, já para não falar das carteiras de tampo à antiga, cheias de História e “estórias” de outros meninos.

Nestes anos de Primária, fui muito feliz. Corri e brinquei sem parar, fiz ballet, natação, patinagem e ténis e mais tempo houvesse mais faria. O espírito que reinava era o da dinâmica, de se aproveitar ao máximo os dias e tudo o que a cidade tão bem proporcionava.

Deixei de morar nas Caldas, tinha perto de 15 anos, rumo ao sul, para acompanhar os meus pais entretanto recém-licenciados noutras áreas. A Setúbal, devo ter ido só as vezes que precisei de apanhar o barco para Tróia e quando me perguntam de onde sou, isto depois de tanta paragem, respondo sempre: Das Caldas!

Das Caldas, de onde me chegam as memórias mais doces, as amizades mais verdadeiras e os laços mais fortes. Das Caldas, onde insisto em manter raízes, palco também da pré e início da adolescência, mais conturbada que a infância, polvilhada de risos e amigos “à séria”, mas também de alguns amargos de boca, como todas as adolescências…Mas da adolescência, não falo agora, até porque a prosa vai longa... Fico à espera que o Paulo me chame novamente preguiçosa para o fazer…


(post da Cecilia (Sissi) Martinho)

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