Tínhamos uma forma de regressar a casa, depois de terminar a aula na escola primária da Praça do Peixe deveras “peculiar”. …..
Depois de acalmada a correria inicial após a saída, a primeira paragem era logo na porta ao lado da porta da Escola, na Drogaria Mimosa (mesmo ao lado), o nosso olhar consumia diariamente a montra, que, se bem me lembro, mudou só uma vez a sua decoração quando alguém partiu o vidro e foi necessário substitui-lo.
Mas nada de novo se passava na montra, mas não sei porque raio, tínhamos um encanto pela montra, o que é certo é que olhávamos quase de olhos fora das orbitas para as embalagens com produtos químicos expostos com as magnificas e proibidas caveiras pequenas na parte inferior da embalagem, que passavam imensos meses na montra sempre brindadas com a nossa admiração diária.
Talvez a curiosidade fosse pelo medo que os nossos pais nos induziam acerca daqueles produtos. Após termos saciado a curiosidade com as drogas na montra da drogaria descíamos até á mercearia do Pena.
Olhávamos para as caras de bacalhau e para as línguas de bacalhau expostas á porta de entrada com um ar de enjoados do pior, aliás não me esqueço de enormes bacalhaus pendurados nas partes laterais das portas da mercearia, por cima das castanhas, nozes e amendoins, com uns papeis brancos agarrados a meio, com letras estilizadas de cor azul, “ Bacalhau da Noruega só no Pena” .
Houve alturas que uma ou outra língua de bacalhau era usada para atazanar alguém, ia parar á mala de algum mais distraído, claro está, que depois levava uma bronca das grossas pelo cheiro que aquele pequenino pedaço de peixe salgado produzia dentro da mala no quarto de quem fosse brindado.
Sempre que o empregado suspeitava de algo, lá estávamos nós com as caritas de anjo na primeira fila do sorriso, como se nada tivesse acontecido. Mas aquela mercearia, possuía ainda mais duas outras mais-valias, uma era aquele cheiro a café incrível, que nos entrava pelo nariz de tal modo que se tornava egoísta, não deixando entrar outros cheiros.
Bom mas esses cheiros faziam os caldenses passarem pelo menos duas vezes por mês no “Pena” para comprar um pacote de café, em papel de cores coloridas esbatidas, que se fechava no topo com a dobragem da parte superior do pacote do qual resultavam, dois triângulos rectângulos que ficavam opostos, mas que muitíssimas vezes eram atados com a passagem da guita numa das dobras que nessa altura usavam e partiam, com uma perícia de ourives em todas as lojas.
Muitas vezes, tentei nessa altura partir o raio da guita e nadaaaaa…
A outra mais-valia do Pena era sem duvida o sitio onde íamos comprar umas pastilhas de nome pirata que faziam uns balões, maiores que as nossas cabeças. Por imensas vezes metemo-nos em sarilhos com essas “performances”, brindando com alguns pedaços de pastilha esticada resultantes dos estoiros desses balões algumas das pessoas que pela praça do peixe, passavam e se cruzavam connosco nos momentos da grande “arte do balonismo”,
Bom até ai seria tudo tranquilo, mas as contra-indicações dessa brincadeira fazia-nos aparecer por vezes após o intervalo, com os cabelos cheios de pastilha, o que nos valia sempre valente reprimenda do professor e por norma, um corte de cabelo bem mais curto, no meu caso no meu tio Hermínio em frente ao antigo quartel da GNR.
Bom já consegui andar 20 metros desde a porta de saída da escola…..nada mal.
Entravamos então na rua Heróis da Grande Guerra onde o nº125 me esperava todos os dias por volta das 13h30, cruzávamo-nos então pelo Ramiro e com as suas montras em curva, onde estava sempre dois manequins masculinos e um feminino, eles de fatos completos, sempre escuros com umas gravatas brilhantes numas posições de Peter Pan, enquanto o manequim feminino, sempre vestido de noiva, coisa que achávamos na altura uma chatice ‘’coitada da mulher tinha de levar aquilo tudo vestido’’ pensávamos nós terríveis “cavaleiros da arte de bem vestir”.
Era então ai, que se dava o inicio da corrida que religiosamente todos os dias iniciávamos nessa parte da rua para executar um salto, na tentativa de chegar a um sinal de trânsito, para aferir a nossa altura já que a loja a seguir ao Ramiro nunca nos cativou, vendia, pratos e serviços de chá os quais achávamos uma tremenda de uma chatice.
Esse sinal estava num suporte que estava cravado na parede antes da padaria que existia na altura e que vendia uns bolos em forma de rim e uns triângulos de coco com os quais ainda hoje me perco, formidáveis acreditem, bolos incríveis comemos nós ai.
Refeitos do esforço sobre humano para nós na altura na vã tentativa de perceber se poderíamos chegar ao sinal, cruzávamo-nos com uma loja que vendia tachos e panelas de alumínio com as pegas pretas e artigos em plástico, que tinha umas portas exteriores verdes, que misturava a madeira com algumas varas de ferro fundido trabalhado.
Com a nossa correria de vez em quando brindávamos os plásticos com uns ligeiros pedidos de licença para passar, nunca aceites por eles, e o resultado era, projecção para a estrada, para um espaço que estava normalmente reservado com duas caixas de madeira e duas tábuas em cima delas em jeito de hipotenusa, para que as camionetas pudessem descarregar as rações para a loja que estava a seguir.
No cruzamento da primeira estrada que tínhamos de atravessar existia e acho que ainda existe uma loja que vendi-a malhas e que mostrava garbosamente os seus pullover´s de lã virgem em manequins de meio corpo sem cabeça, nas suas pequenas montras de meia altura, tapados com uns papeis transparentes amarelos e verdes nas horas de maior luminosidade, estando no interior da loja uma senhora com um ar carrancudo que nunca nos cativou para dar-nos liberdade á nossa curiosidade e criatividade nos lanifícios de pura lã virgem.
Depois de passado este cruzamento aparecia um talho do qual não me lembro o nome, que nos gastava alguns momentos a olhar de caras coladas á montra de narizes apertados de encontro ao vidro para as peças de carne penduradas, prontas a serem vendidas Os empregados de bata branca com alguns vestígios de sangue, andavam de um lado para o outro a afiar vigorosamente as suas facas de lâmina enorme, no fuso.
Era com essas enormes facas que para nós na altura pareciam espadas que talhavam os bifes e as bifanas, de pedaços que retiravam das pernas enormes de vaca e das peças inteiras do porco para as senhoras de penteados de caracóis e pregadeiras cheias de pedras reluzentes, com saias e casacos do mesmo tecido, que levavam sempre uma sesta rectangular de sisal ou algo do género que tinha uns riscos na horizontal verdes e encarnados e uma pega desse material entrelaçado.
Quando a acção deixava de ser interessante, passávamos para a próxima paragem que era sempre muito curta, pois o nosso forte nunca foi os sapatos, a sapataria Macadi, com a sua mistura de sapatos e botas nas montras e na exposição de exterior eram meras bolas brilhantes na arvore de natal para nós.
O que nos fazia deslizar um pouco mais na rua fazendo-nos passar entretanto pelo depósitos de pesticidas da Sapec, que tinha um portão enorme onde hoje é uma rua, além disso tinha também, uma montra enorme talvez a maior das Caldas durante décadas, apesar de escondida, sitio esse que nos dava abrigo aquando de algumas chuvadas mais fortes, mas que o cheiro de pesticidas nos fazia sair dali rapidamente, pois aquele cheiro provocava uma terrível má vizinhança.
Com alguma pena a minha casa estava a aproximar-se e como desde novinho aprendi, que á volta do burgo, não se queima as cortinas a contenção e o portar bem, tinha de estar no ponto todos os dias nesta aproximação a casa, não fosse alguma vizinha ou amiga da minha mãe estar plantada na janela a ver as modas a passar na rua.
Tendo ainda de passar pela Alliance Francaise e atravessar a rua do quartel dos bombeiros (era assim que a chamávamos), que possibilitava aos carros voltarem para a rua Heróis da Grande Guerra ou continuar para a Almirante Reis (rua das Montras, hoje estas ruas não tem transito), bem como pelo Gil com os seus vidros e espelhos.
Mas por último vinha o supermercado Nutripol que para a altura era quase uma inovação com o carrancudo do Sr. Ribeiro sempre a olhar para nós quando nos vi-a a comprar uns chocolates e uns Sugus ou Smarties em dias de algumas prendas monetárias.
Retirava a chave de casa da mala que sempre usava nas costas, metendo-a na fechadura rodando-a com frenesim, para uma subida de escadas tipo míssil, em direcção ao sofá para assistir ao final da emissão da RTP 1 que nessa altura acabava às duas da tarde.
Era assim um simples regressar a casa depois do fim das aulas na Escola Primária às 13h00, percorrendo pouco mais de 400 metros …
(post do António José Albano)
Cat Stevens - Remember The Days Of The Old Schoolyard
Sem comentários:
Enviar um comentário