segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

TRINTA ANOS DE GREEN HILL



In Gazeta das Caldas, edição de 24 de Setembro de 2010


Trinta anos de actividade para uma discoteca como a Green Hill, na Foz do Arelho, representam milhares de histórias passadas ao som da música.

Avós, pais e netos já dançaram na mesma pista de dança, fosse ao som de um slow ou das batidas mais fortes da música electrónica.

A Green Hill nasceu em 1980 na Foz do Arelho, numa aldeia que hoje é vila e tornou-se discoteca ao nível nacional. Nestes 30 anos só houve um único fim-de-semana, no ano 2000, em que não funcionou (devido a trabalhos de remodelação).

Para além de muitos encontros e desencontros que aconteceram naquele espaço, o Green Hill é também a história de uma familia.

Luis Romão e Filomena Félix eram casados quando inauguraram a discoteca. Ricardo Romão, o único filho do casal, tinha apenas três anos.

Actualmente e após várias vicissitudes e dramas familiares, mãe e filho gerem a discoteca em conjunto.


O SONHO DE LUIS ROMÃO

Filomena Félix nasceu em 1955 na Foz do Arelho, onde continua a viver. Os seus pais (já falecidos) eram os proprietários do restaurante Lagoa Bar, em frente ao Inatel, do qual fazia parte um posto de combustível.

‘’Toda a gente conhecia a casa do Zé Félix. De Julho a Setembro passavam diariamente milhares de pessoas pelo restaurante’’, lembrou. Filomena Félix começou a trabalhar no restaurante dos seus pais desde pequena, apesar de ter estudado até ao ensino superior, ‘’Estive no ISLA e só não acabei o curso por um ano’’, contou.

Filomena chegou a pensar sair de Portugal para trabalhar na área do seu curso (Secretariado) mas quando se casou com Luis Romão, em 1975, abandonou os estudos e decidiu ficar.



Luis Romão é natural de Rio Maior, onde nasceu em 1954. O casal residia na Foz do Arelho e Luis insistia em concretizar o sonho de abrir uma discoteca. Chegaram a pensar em avançar com o projecto na garagem da casa dos pais de Filomena Félix mas como esta estava mesmo no centro da Foz, mudaram de ideias.

O edificio onde agora funciona a Green Hill era à época um pequeno armazém, que era utilizado pelo pai da Filomena para criação de galinhas e de porcos. Na parte da frente tinha os frangos e na parte de trás funcionava a pecuária.

Foi o próprio Luis Romão, com um pedreiro, quem fez as obras. Enquanto isso, Filomena Félix dedicava-se à parte burocrática. ‘’Já naquela altura era muito complicado tratar dos papéis e quem me ajudou muito foi o João Santos, que agora é o secretário do Presidente da Cãmara’’.

O investimento inicial na altura foi de cerca de dois mil contos (10 mil euros). ‘’O meu irmão estava nos Estados Unidos e trouxe a aparelhagem de som de lá’’, adiantou Filomena Félix.

A empresária deu voltas à cabeça antes de encontrar o nome certo para a discoteca. ‘’Como aquilo era uma zona verde e eu sou sportinguista e como, ainda por cima, ficava numa colina, fui ao dicionário e achei piada ao nome – Green Hill’’.

Naquela altura a discoteca ficava ‘’no meio das fazendas’’ conta Mena. Ainda não havia a rotunda (hoje conhecida pela rotunda do Green Hill) nem o acesso à praia pelo lado do mar e até a estrada Atlântica não estava toda alcatroada.

O estabelecimento abre com a designação oficial de ‘’bar dancing’’ e foram muitas as dificuldades para licenciar a casa. Trinta anos depois, Filomena continua a queixar-se de ter que enfrentar muita burocracia de cada vez que quer fazer alterações no edifício.

A empresária não percebe por que há tantas casas do género que abrem de qualquer maneira e para a sua discoteca seja necessário apresentar tantos projectos de cada vez que precisa de fazer obras.



UMA INAUGURAÇÃO ESTRONDOSA

Quando a Green Hill abriu portas, a 30 de Maio de 1980, tinha uma pequena pista de dança, uma cabine de som e um bar. De todo o edifício, o balcão do vestiário é o único elemento que se mantém desde a inauguração.

Antes da abertura ao público, na noite anterior, fizeram uma pré-inauguração com alguns amigos* mas no primeiro sábado tiveram logo casa cheia. ‘’Parecia haver uma necessidade enorme de um espaço destes. Foi uma inauguração estrondosa e as pessoas nem cabiam todas’’, lembrou.

Apesar do início auspicioso, os primeiros anos foram difíceis. ‘’Sempre fui muito selectiva á porta, mesmo quando tinha a casa vazia’’, disse a empresária, que durante muitos anos fez questão de estar à porta, logo a seguir ao porteiro.

Com 25 anos, Mena continava a trabalhar no restaurante dos pais e mantinha o negócio da discoteca aos fins-de-semana.

Na discoteca trabalhava com Luis Romão (que era o DJ), um segurança, dois barmen e poucos mais funcionários. ‘’Éramos meia dúzia e atendíamos toda a gente quanto atendem 45 funcionários’’, referiu.



Entre 1991, quando se divorciou de Luis Romão, até 1997, Filomena Félix esteve afastada da Green Hill. Voltou um ano depois do assalto ao seu ex-marido, na sequência do qual Luis Romão ficou incapacitado. O empresário sofreu graves lesões neurológicas ao ser agredido depois de oferecer resistência a um assalto, na madrugada de 8 de Setembro.

Este foi o episódio mais negro da história da discoteca e que ainda hoje é difícil de abordar por parte da família. (...)


Artigo de Gazeta das Caldas – Pedro Antunes - 24.09.2010





A Green Hill marcou a nossa geração e muitas foram as noites inolvidáveis que lá passei.

Contudo o inicio de actividade da discoteca não foi para mim nada auspicioso. Pelo contrário, a primeira noite ficou marcada pela tragédia.

* Na noite da pré-inauguração, jantei com a Filomena Félix e o Luis Romão em casa do casal Dinis, Joaquim e Alice, pais do João Miguel, no andar que ficava por cima dos correios da Foz, onde os meus amigos residiam pelo facto da mãe do João Miguel ser a Chefe dos Correios locais. Aliás o bilhete acima exposto marca a ida à Green Hill, a 12 de Julho, para festejar o aniversário do João Miguel nesse ano.

Na noite da inauguração a que eu fui com as minhas irmãs, o nosso pai veio chamar-nos à discoteca por volta das duas da manhã com um ar muito sério. O nosso amigo Fernando Barardo, despistara-se na curva da Fábrica do Sabão quando na companhia da sua noiva se dirigia para a Green Hill e morrera no acidente. O resto da nossa noite foi passada junto à porta da morgue do Hospital Distrital das Caldas com os seus familiares, nossos amigos.



Em várias crónicas que publiquei mencionei ‘’O Green Hill’’ ou ‘’A Green Hill’’ conforme diferentes pessoas se referem a esse local que foi de culto para os dos anos 80.

Mencionei-o em ‘’Cruzando os Anos em Poucos Dias – Diário de um Estudante’’, em ‘’Em Busca da Espiritualidade’’, em ‘’O Fim da Adolescência’’ e voltei a esse tema em ‘’Em Serviço Público’’.

Na realidade poderia referir-me ao Green Hill em dezenas de crónicas minhas, se me lembrasse de cada noite, porque cada uma daria uma crónica ou pelo menos uma página de um diário!

A abertura do Green Hill, em 1980, apanhou-me no final do meu 11º ano, tinha acabado de largar umas canadianas devido a um acidente a jogar voleibol com o Paulo Gaspar, o Paulo Mateus, o Paulo Jorge, entre outros que não se chamavam Paulo. Foi no ginásio do primeiro andar do Liceu, recordam-se? Havia outro no segundo andar e ainda tínhamos a Parada como alternativa nos dias de sol!

Apesar do Green Hill continuar sempre aberto, eu dei por fim à minha temporada no final dessa década mas esses dez anos valeram por uma vida pois foram centenas as noites ali passadas.

Namoros iniciados, namoros acabados, casos de uma noite e casos que nem começaram por timidez minha ou por desinteresse da visada! Assim se fazia a vida de um jovem adolescente!



As noites do Green Hill marcarão para sempre as memórias de todos os que partilham este espaço e é difícil imaginar o que teriam sido essas noites da nossa adolescência sem a existência do Green Hill. Dizem que foi a existência deste que matou as outras discotecas das Caldas. Dizem até que o Ferro Velho, já na gerência do Luis Romão, foi encerrado para fortalecer a clientela do Green Hill. Histórias e conjunturas sem confirmação e que se desvanecem perante o facto do Green Hill ter sido o que foi para a minha geração.


Eu era dos que marcava sempre o ponto e mesmo em noites que fazíamos maratonas de discotecas, começando no Kiay em Marinhas ou no Eurosol em Leiria, descendo depois à Princess ou ao Sunset em Alcobaça ou ao Moinho nos Montes, indo ainda ao Jeans Rouge na Nazaré ou ao Bonnie & Clyde em S. Martinho do Porto ou ainda ao Snoopy em Salir e  ao Dreamer's na Foz, era certo que lá para as 4 da manhã estaríamos a marcar presença no Green Hill.

Deve-se abrir aqui um interregno para explicar às gerações mais novas que nós não nos deitávamos à meia-noite para pôr o despertador para as 4h00 da manhã e para então irmos ás discotecas. Pelo contrário, se fosse por nós , comíamos discotecas à sobremesa. Às 23h00 começávamos a debandar para os dancings e em alguns casos até desfrutávamos de um show pré-abertura, como era o caso do Eurosol em Leiria, que apresentava, acabadinho de chegar de Londres numa das malas de um tripulante da TAP, o vídeo com o UK TOP 40 CHART semanal.

Isto no tempo em que não existiam praticamente programas de música na RTP que começava naquele ano a transmitir integralmente a cores. ( e o primeiro canal privado só surgiria 12 anos depois). E os vídeo-clips das músicas do top londrino eram passadas numa tela em contagem decrescente até à meia-noite, altura em que se iniciava o show de lasers ao som de ‘’Also sprach Zarathrusta’’ de Richard Strauss que os menos relacionados com a música clássica poderão reconhecer como fazendo parte da banda sonora do filme 2001 Odisseia no Espaço.


Algumas destas músicas de abertura ou de encerramento ficaram para sempre nas nossas memórias e durante muito tempo o Green Hill encerrava com alarmes tipo sirenes e luzes a baixarem de intensidade até ao som final dos Europe com The Final Countdown.




Nem era muito de dançar. Aliás pouca gente se recordará de mim a dançar, excepto os slows, claro! O fim dos slows foi o fim de uma Era!


Abro de novo aqui um interregno para explicar aos putos que um slow era uma forma de dança antiga, um pouco mais recente que as valsas e as polcas, em que os casais dançavam, aos pares (que estranho!) e agarrados (que horror!).


Citando e parafraseando o Joe do blog Classe de 70, um slow, antes de tudo o mais, tinha de ser uma canção de amor lamechas. Não bastava ter um tempo lento, propiciando o arrastamento de pés; a temática devia também ser propícia às caricias da face na face, ao correr dos lábios pelas orelhas e nuca ou pescoço e ao deslizar de mãos. Não passava pela cabeça de ninguém chamar slow a coisas como o Fade to Grey ou o Tokyo Song.

Depois, um slow tinha que ser uma coisa simples, que entrasse bem no ouvido e que tivesse uma mensagem clara, tipo “me Tarzan, you Jane”. Slows com muita poesia distraíam do essencial; e com uma música complicada perturbavam o piloto automático. Um slow tinha que ser 100% pop, sem grandes pretensões artísticas.


Estou a imaginar-me todo compenetrado em conquistar a rapariga durante o slow Love Hurts dos Nazareth e ela a afastar-me ligeiramente, fitar-me muito seriamente e dizer-me:

- Tenho estada atenta a ouvir a letra desta canção e realmente toca-me bem fundo! – e ao dizer isto faz um daqueles estalidos de língua de quem está mesmo chateada com qualquer coisa ou com alguém que lhe toca fundo e que não serei eu!

Pronto! Dança estragada!



O Amor Machuca


O amor machuca, o amor deixa cicatrizes, o amor fere e prejudica
Qualquer coração que não seja resistente ou forte o suficiente
Para aguentar muita dor, aguentar muita dor.
O amor é como uma nuvem, contém muita chuva.


O amor machuca, oh, oh, o amor machuca


Sou jovem, eu sei, mas mesmo assim
Eu sei que uma coisa ou duas, que eu aprendi com você.
Eu realmente aprendi muito, realmente aprendi muito.
O amor é como uma chama: ele te queima quando é ardente.


O amor machuca... Ooh, ooh, o amor machuca.


Alguns tolos pensam em felicidade, suprema alegria, união.
Alguns tolos enganam a si mesmos, eu acho,
Mas eles não estão enganando a mim.
Eu sei que não é verdade, eu sei que não é verdade.
O amor é apenas uma mentira criada para te deixar triste.


O amor machuca... Ooh, ooh, o amor machuca...


Oh, oh, o amor machuca (3x)


Oh, oh

(Love Hurts - Nazareth)

Nazareth - Love Hurts (1975)

Sejamos claros, era um tipo de canção com uma função específica, e essa função não era fazer-nos pensar no sentido da vida.

Mais do que isso: tinha que ser, no mínimo, ligeiramente azeiteiro. Coisas como o I Know It's Over, o Killing Moon ou o Are You Ready To Be Heartbroken não servíam, são demasiado boas. Mas há, evidentemente, casos de fronteira – por exemplo, o Souvenir devia ou não ser admitido a concurso? Inclino-me para o não, embora com dúvidas.

Finalmente, só é um slow a sério uma canção que toda a gente conheça. Nada de faixas escondidas ou de lados-B desconhecidos. Tem que ser como a pasta medicinal Couto e andar na boca de toda a gente. Tem que ser um single, e de sucesso. Daqueles que agora pode passar nos programas da noite da RFM ou no Rádio Clube Português.

Sei que alguns de vós me vão perguntar como é que assim conseguiam esbracejar e atirar com uma perna para cada lado e sobretudo acenar firmemente com a cabeça sem correr o risco de partir a testa ao seu par! Pois bem, não podiam. Tinham que ficar quietinhos e fazer o mínimo de gestos possíveis salvo os necessários para não parecer mal! Isso incluía um ligeiro movimento rotativo de pés e os únicos movimentos mais frequentes eram feitos com suavidade com os dedos, faces, às vezes lábios a roçarem pela cara… enfim, definitivamente a posição de slow para além de ser uma segura fonte de contágio de gripe A é também impossível de adequar à música house. (para saber mais sobre os slows ler no blog a crónica: ‘’Slows e alguns Termos Náuticos’’).

Geralmente ocupava, em conjunto com o meu grupo de amigos, um lugar quase pré-definido junto ao balcão de entrada, diante da primeira pista de dança e junto à porta que dava acesso a um segunda sala e por aí, à segunda pista de dança.

Daí controlávamos todo o ambiente, incluindo quem entrava e as caras novas, e facilitava muito o nosso reabastecimento constante de gin tónicos, sempre Gordon’s!

Existe um grupo no Facebook denominado ‘’Ai o que eu curti na pista de Rock do Green Hill’’, da primeira vez que o vi lembrei-me logo de criar um outro grupo denominado ‘’Ai o que eu curti FORA da pista de Rock do Green Hill’’. Francamente, dançar era (e é!) óptimo, mas perdíamos a nossa vida de adolescente se não saíssemos da pista. Então acham que eu teria estórias para contar se me ficasse pela pista?!

A Green Hill inicialmente não era mais que essa primeira sala com o bar, a pista de dança, tendo a cabine em frente junto a uma outra sala de piso um pouco mais elevado tanto uma como outra sala tinham umas balaustradas divisórias para a pista de dança.

Só mais tarde sofreu as pequenas alterações com a passagem da cabine do Dj para a direita e o aumento para o fundo com a criação das casas de banho, o corredor nas traseiras que dava para a sala lateral, a tal que dava para a segunda pista de dança e para um dos pátios, o segundo a ser construído pois o primeiro foi aberto à esquerda da nova cabine do Dj.

Mais tarde seria construído o primeiro andar com o seu bar com música ao vivo e entrada exterior privativa e daí em diante a Green Hill transfigurou-se em cada ano sendo hoje um espaço completamente diferente, certamente mais adequado às expectativas da nova clientela.



Da pequena discoteca ao amplo e moderno espaço de hoje decorreram três décadas, uma eternidade para muitas discotecas. Viu nascer e morrer muitas discotecas na Foz e na zona Oeste mas manteve-se e hoje continua a ser a referência da Região Oeste.

Mas a apesar de todas as mudanças a Green Hill ainda conserva a patine que lhe é dada pelas nossas recordações.

Momentos inesquecíveis com amigos de sempre e com amigos já desaparecidos que recordo com muita saudade e já começam a ser muitos, demasiados! Quantos morreram a caminho ou no regresso do Green Hill? Quantas notícias trazidas a meio da noite ou apenas na manhã seguinte. Podia escrever aqui uma lista maldita de tantos que se perderam entre as árvores e as curvas da malfadada estrada velha.

Mas prefiro puxar a minha memória para os melhores momentos.

Noites com o Sr. Beja e com a Mena à porta, com o Luis Romão, o Zé Manel, o Tó, o Paulo Toyota a pôr musica, o Carlos no bar, noites de Inverno, Passagens de Ano, festas de Carnaval, do 15 de Agosto, de Aniversário, Festa da Porca e do Parafuso e tantas outras.

Paulo ''Toyota'' Aguiar na Green Hill em 1990
(fotos cedidas por Paulo Aguiar)

Cada remodelação, o novo bar no primeiro andar, com música ao vivo, os terraços exteriores, a segunda pista de dança, tudo acompanhei ao longo dos anos 80 e o Green Hill, o ‘’Granel’’ como lhe chamávamos, testemunhou mais de dez anos da minha vida, do dia da pré-inauguração até um dia em que me senti como um dos anacrónicos clientes que censurava dez anos atrás. Quando me senti demasiado velho para o frequentar entre os miúdos adolescentes que agora enchiam as suas pistas de dança. E que teriam menos dez-doze anos que eu. O bastante!

Não porque não continuasse de gostar de discotecas mas porque me sentia mais enquadrado entre os da minha geração e isso só poderia encontrar então em discotecas de Lisboa.

Momentos únicos, aquelas noites iniciadas em Óbidos, na Cave do Vale, na Biquinha, no Ibn Rex, no Badanaite ou na Foz, no Café Tabaco e mais tarde no Solar da Paz, no Sitio da Várzea, no Sopa Doce, no Let’s ou em outras discotecas de outras localidades e terminadas invariavelmente no pão quente de alguns locais das Caldas ou das Gaeiras ou a tomar um duche rápido e a seguir de imediato para a praia para poder aproveitar ao máximo o Verão, esse mesmo Verão que nos traziam os amigos de sempre e novas caras que se tornaram amigos para toda a vida.

Encontros de Verão que se renovavam de ano a ano e muitos amigos que perdi de vista com o fim das nossas idas ao Green Hill, lembro-me de famílias inteiras de irmãos e irmãs, de grupo enormes de amigos que vinham em excursão, corrijo, em peregrinação ao Green Hill, vindos de Torres Novas, Torres Vedras, Cartaxo e Almeirim, Santarém, Alpiarça, Leiria e Alcobaça, de Lisboa e até de Évora. Recordo-me de todos eles pelos nomes, recordo-me das suas caras e da alegria do reencontro.



Talvez um dia tenha a capacidade de fazer uma festa de reencontro que os atraia a todos, que deixem os filhos com a família, os afazeres profissionais para trás, que deixem as preocupações e a falta de vontade de sair ou de cobrir a distância de lado e respondam ao apelo e que pelo menos, por uma vez, tenhamos de novo uma noite daquelas no Green Hill.





TOP 100 - 1980 BILLBOARD


1. Another One Bites The Dust - Queen
2. Call Me - Blondie
3. Do That To Me One More Time - Captain & Tennille
4. Lady - Kenny Rogers
5. Upside Down - Diana Ross
6. Another Brick In The Wall - Pink Floyd
7. Rock With You - Michael Jackson
8. Woman In Love - Barbra Streisand
9. Crazy Little Thing Called Love - Queen
10. (Just Like) Starting Over - John Lennon
11. Magic - Olivia Newton-John
12. Coming Up (Live At Glasgow) - Paul McCartney & Wings
13. Please Don't Go - KC & The Sunshine Band
14. It's Still Rock And Roll To Me - Billy Joel
15. Funkytown - Lipps, Inc.
16. Little Jeannie - Elton John
17. Ride Like The Wind - Christopher Cross
18. Cruisin' - Smokey Robinson
19. Master Blaster (Jammin') - Stevie Wonder
20. Lost In Love - Air Supply
21. All Out Of Love - Air Supply
22. More Than I Can Say - Leo Sayer
23. The Rose - Bette Midler
24. Working My Way Back To You/Forgive Me Girl - Spinners
25. Coward Of The County - Kenny Rogers
26. Sexy Eyes - Dr. Hook
27. Biggest Part Of Me - Ambrosia
28. Cupid/I've Loved You For A Long Time - Spinners
29. Emotional Rescue - The Rolling Stones
30. Hungry Heart - Bruce Springsteen
31. Steal Away - Robbie Dupree
32. Don't Fall In Love With A Dreamer - Kenny Rogers/Kim Carnes
33. Shining Star - The Manhattans
34. Yes, I'm Ready - Teri DeSario w/ KC
35. He's So Shy - Pointer Sisters
36. Too Hot - Kool & The Gang
37. Drivin' My Life Away - Eddie Rabbitt
38. Sailing - Christopher Cross
39. Hit Me With Your Best Shot - Pat Benatar
40. Cars - Gary Newman
41. This Is It - Kenny Loggins
42. Longer - Dan Fogelberg
43. Take Your Time (Do It Right) - S.O.S. Band
44. You've Lost That Lovin' Feeling - Daryl Hall & John Oates
45. Late In The Evening - Paul Simon
46. Stomp! - The Brothers Johnson
47. Ladies Night - Kool & The Gang
48. Never Knew Love Like This Before - Stephanie Mills
49. More Love - Kim Carnes
50. Desire - Andy Gibb
51. Give Me The Night - George Benson
52. The Wanderer - Donna Summer
53. Fame - Irene Cara
54. Whip It - Devo
55. Against The Wind - Bob Seger
56. With You I'm Born Again - Billy Preston & Syreeta
57. I'm Coming Out - Diana Ross
58. Special Lady - Ray, Goodman & Brown
59. We Don't Talk Anymore - Cliff Richard
60. The Long Run - Eagles
61. I Can't Tell You Why - Eagles
62. Hurt So Bad - Linda Ronstadt
63. Let's Get Serious - Jermaine Jackson
64. How Do I Make You - Linda Ronstadt
65. Daydream Believer - Anne Murray
66. On The Radio - Donna Summer
67. Brass In Pocket (I'm Special) - The Pretenders
68. Into The Night - Benny Mardones
69. Lookin' For Love - Johnny Lee
70. Fire Lake - Bob Seger
71. Real Love - Doobie Brothers
72. I'm Alright - Kenny Loggins
73. Him - Rupert Holmes
74. You May Be Right - Billy Joel
75. Cool Change - Little River Band
76. Dreaming - Cliff Richard
77. She's Out Of My Life - Michael Jackson
78. Better Love Next Time - Dr. Hook
79. Don't Do Me Like That - Tom Petty & The Heartbreakers
80. Jesse - Carly Simon
81. An American Dream - Dirt Band
82. Hot Rod Hearts - Robbie Dupree
83. The Second Time Around - Shalamar
84. Sara - Fleetwood Mac
85. Tired Of Toein' The Line - Rocky Burnette
86. Let Me Love You Tonight - Pure Prairy League
87. Xanadu - Olivia Newton-John
88. Let My Love Open The Door - Pete Townshend
89. One Fine Day - Carole King
90. Off The Wall - Michael Jackson
91. I Wanna Be Your Lover - Prince
92. Romeo's Tune - Steve Forbert
93. Breakdown Dead Ahead - Boz Scaggs
94. Look What You've Done To Me - Boz Scaggs
95. Jane - Jefferson Starship
96. Don't Let Go - Isaac Hayes
97. Pilot Of The Airwaves - Charlie Dore
98. All Over The World - Electric Light Orchestra
99. You'll Accomp'ny Me - Bob Seger
100. Refugee - Tom Petty & The Heartbreakers





Queen - Another One Bites the Dust

Blondie - Call Me

Captain & Tennille - Do That To Me One More Time

Kenny Rogers - Lady

Diana Ross - Upside Down


Pink Floyd - Another Brick in the Wall


Michael Jackson - Rock With You


Barbra Streysand - Woman in Love


Queen - Crazy Little Thing Call Love


John Lennon - (Just Like) Starting Over

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

UM CONTO DE NATAL




UM CONTO DE NATAL

I

Todos nós tivemos um Natal mágico. Um Natal que nos ficou na memória como uma marca indelével do passado.

Para mim foi o Natal de 1968. Nesse ano eu apanhei varicela poucos dias antes e nessa noite fervia em febre para minha grande decepção que esperava por essa noite com enorme expectativa quer pela abertura dos presentes quer pelos momentos de brincadeira com os meus primos.

Tradicionalmente passávamos a Consoada em casa dos meus avós paternos na companhia dos meus tios, primos e tio-avós.

Então a minha mãe embrulhou-me numa manta e levaram-me ao colo para casa dos meus avós a poucas centenas de metros de distância. Tive de passar a noite de Natal deitado num sofá vendo com tristeza e inveja as minhas irmãs e primos nas correrias pela casa.

Pouco antes da meia-noite começaram a distribuição de presentes e com ansiedade aguardámos o momento da entrega dos oferecidos pelos meus avós que eram sempre os melhores.

Naquela altura recebíamos um presente por casa pelo que recebíamos no máximo uns três ou quatro por ano e eu recordo-me de todos os  que recebi dos meus avós em todos os Natais até esse ano de 1968.
 


Os presentes iam sendo entregues e eu e a minha prima Paula constatámos com tristeza que não tínhamos recebido nesse Natal qualquer presente dos meus avós. Contudo, não fizemos nenhum comentário e não nos apercebemos dos sorrisos maliciosos dos adultos.

Pouco depois mandaram-nos sair da sala para cumprir uma qualquer tradição e as luzes apagaram-se por instantes. Nos dias seguintes eu jurava aos meus colegas de jardim-escola que as luzes se tinham apagado apenas por um segundo e na minha memória realmente ainda me parece que foi tudo num ápice. Assim, um segundo depois, as luzes voltaram a acender-se e junto á enorme árvore de natal, sempre a maior e melhor decorada que eu já vi, apareceram duas bicicletas vermelhas de tamanhos diferentes. Eram os nossos presentes!

Naquele Natal tive o presente mais ansiado e aquela bicicleta durou anos.  Quando no Outono de 1973 me mudei para o Burlão a pequena bicicleta ficou para trás, não havia lugar para ela na nova casa e provavelmente os meus pais ofereceram-na a alguma instituição.



Só muitos anos mais tarde senti no rosto de alguém uma felicidade tão plena ao receber um presente como a que eu vivi naquele dia. O presente era tão insignificante perante aquela bicicleta e contudo para quem o recebeu era, naquele Natal, o mais valioso dos tesouros do mundo.

Naquele Natal aprendi duas lições.
Não é o valor das coisas que possuímos que nos dá a felicidade e que existem poucas coisas que nos poderão trazer  tanta alegria como aquela que sentimos perante a felicidade que vimos em alguém a quem damos algo verdadeiramente importante.






II

''Ele acorda momentos antes da chegada do Espírito do Natal Passado, uma criança fantasma com uma cabeça brilhante. O espírito acompanha o rabugento Scrooge numa viagem ao passado. Invisível para aqueles que ele vê, Scrooge revisita os seus dias de escola na infância, o seu aprendizado com um alegre comerciante chamado Fezziwig, e o seu noivado com Belle, uma mulher que deixa Scrooge porque o seu desejo por dinheiro se sobrepõe à sua capacidade de amar. Scrooge, profundamente comovido, derrama lágrimas de arrependimento antes do fantasma o trazer de volta à sua cama. ''

Charles Dickens - A Christmas Carol


II


Foi há mais de trinta anos. Mas eu nunca esqueci!

Eu deveria andar pelos meus 15 ou 16 anos e fazia da Zaira um dos meus pontos de encontro preferidos. De manhã ou à tarde, nos intervalos ou no fim das aulas encontrávamo-nos todos naquele café da praça, que foi o nosso quartel durante quase duas ou três décadas. Para alguns, uma herança vinda dos pais e até dos avós.

Sentávamo-nos geralmente ao fundo, de preferência nas mesas atrás do arco à esquerda, onde conseguíamos ver quem chegava antes mesmo de sermos vistos e onde os que fumavam às escondidas estavam a salvo.

Numa época sem telemóveis nem rede sociais via net, a Zaira, como foi para outros o Convívio, a Taiti, o Central, , o Camaroeiro, a Maratona, o café do Diamantino e da Ema ou o Café Creme no Bairro da Ponte ou durante o dia o Machado ou o Gato Preto, era o porto seguro, onde sabíamos ir encontrar os amigos a determinadas horas.

Era mesmo para quem chegava de fora, a certeza de reencontrar as velhas amizades ou saber de tantas outras.

Não telefonávamos, nem corríamos para um computador, que não existia. Apenas nos metíamos a caminho com a certeza do encontro.

Ali estudávamos, até nos proibirem de o fazer por estarmos a ocupar as mesas sem fazer consumo. (Um palito, um jornal e um copo de água, costumava dizer o João Gancho quando o abordavam). Ali começámos namoros, ali discutimos ideias e soubemos os mexericos. Ali nos ficávamos nas divertidas manhãs de sábado ou nas bucólicas tardes cinzentas de Inverno e dali partíamos nas noites de sexta e sábado em direcção a Óbidos, a S. Martinho ou à Foz, procurando os bares e as discotecas da época.

Eramos um grupo sólido mas muito grande e heterogéneo, era a malta da Zaira! Fieis polidores das paredes da Câmara Municipal fronteira e exímios testadores das suspensões e rigidez dos capots dos veículos estacionados em frente.

Fazíamos piscinas à Praça e à Rua das Montras e sortidas aos bilhares do Camaroeiro mas à hora de partida regressávamos à base, como os pombos do parque voltavam aos telheiros do Liceu.

Teríamos todos entre 14 e 25 anos, depois aparecia já a geração dos pais. Era raro aparecer uma criança sozinha, então à noite eu diria quase impossível.

Não me recordo porém quando apareceu o Zequinha pela primeira vez pela Zaira.

Era um miúdo muito franzino, até demais para a sua idade que era bastante indefinida. Ele nunca nos disse a sua verdadeira idade mas nós calculávamos que o fazia apenas para sua defesa. Não teria mais de 9 ou 10 anos.

O Zequinha chegou e de imediato se tornou a nossa mascote.

Quando perguntava a sua origem contavam-me diferentes histórias e na realidade julgo que ninguém o sabia verdadeiramente ou o procurou saber.

A versão que me foi contada falava-me de uma mãe que morrera e de um pai longe ou incapaz, diziam-me que o Zequinha e os seu irmãos estavam ao cuidado da irmã mais velha, de uns 14 ou 15 anos embora legal e oficialmente aparecesse registada a avó. Não sei se era realmente assim mas a história não poderia ser muito diferente, a avaliar pela forma como aparecia, sozinho, faminto e jovem, muito jovem, demasiado jovem. Uma criança!

O Zequinha para fazer algum dinheiro, com a dignidade que mantinha, e porque não pretendia viver dos bolos e sandes que lhe davam, decidiu arranjar uma caixa de sapatos, frascos de graxa e panos velhos e escovas e pedia-nos que o deixássemos engraxar os sapatos, como era habitual naquele tempo, existindo mesmo um pequeno batalhão de engraxadores do outro lado da praça.

E nós, entre a vergonha de o pôr nessa tarefa e a vontade de o ajudar, acedíamos a esse desejo, fazendo com isso o seu ganha-pão.



Muitos, na inconsciência da sua juventude, pregavam-lhe partidas, não lhe pagando os serviços, escondendo-lhe a caixa com as pequenas moedas de trocos e houve alguém, definitivamente mal-intencionado, que lhe roubou os ganhos de um dia.

Nessa noite o Zequinha chorou desalmadamente, chorou como eu nunca o tinha visto chorar!

Chorou não de auto-comiseração mas de raiva perante a vida, de desilusão perante os outros.

Infelizmente, o miúdo começou a aprender depressa e muito cedo que a vida não favorece os melhores nem os mais desprotegidos, a vida é uma lotaria aleatória que podemos forçar em nosso propósito mas no fim é sempre uma questão de sorte ou azar que nos fará feliz ou infeliz. Consigamos atingir ou não os nossos objectivos, existem sempre factores que não dominamos e que em qualquer altura nos podem cair em cima, deitando por terra tudo o que construímos seja material seja espiritualmente.

Logo ali nos juntámos e reunimos alguns cobres para atenuar a infelicidade do rapaz, já nessa altura afirmava que o dinheiro se destinava a ajudar a família, os seus irmãos. E nós não víamos razão para não acreditar!

Levávamos o Zequinha atrás para todo o lado, excepto para a vida nocturna. Lá para as dez da noite recambiávamo-lo para casa, julgo que no bairro dos Arneiros, e só então a sua figura franzina, os seus olhos estrábicos e os seus tiques nervosos, se afastavam de nós, uma caricatura de família e de grupo de amigos que parecíamos personalizar.

Chegou o Natal, talvez de 1980 ou 81. O Zequinha veio ao pé de nós com uma caixa de cartão e um ainda maior empenho em nos engraxar os sapatos.

- Quero comprar um transístor! Não, um rádio daqueles maiores em que eu posso apanhar todas as estações e que funciona a pilhas! – explicou-nos ele.

- E quanto custa isso? – perguntámos.

- Cento e vinte escudos!

- É pá! - disse o José Vargas colocando-lhe a mão ao ombro e fazendo aquele seu habitual sorriso irónico. – Vais ter muito que foçar! A cinco tostões a engraxadela vais ter que alargar o teu metier aos outros cafés se não, não te safas!

Mas o Zé, que atrás daquele ar de gozo permanente tem muito bom coração, começou de imediato a cravar toda a gente para ajudar o Zéquinha.

O miúdo, mesmo assim teve de trabalhar no duro mas todos os dias chegava ao pé de nós, com as suas contas e sentia-se feliz, cada vez mais perto do objectivo. Um sorriso de esperança invadia-lhe agora o rosto!

Era Natal! Era isto que era suposto acontecer!

Grão a grão, sapato a sapato, o Zéquinha foi angariando as moedas necessárias para comprar o seu rádio. Muitos ajudavam-no dando-lhe uma gorjeta. Muitos gozavam-no, escondiam-lhe a caixa, pediam-lhe dinheiro emprestado para o café, dinheiro que não devolviam. Mas apesar da falta de generosidade de muitos, do sarcasmo de outros, dos adultos que o mandavam para casa e para a escola mas que o não ajudavam, apesar de todas as dificuldades, um dia foi Natal para o Zéquinha!

Um dia, a criança chegou ao pé de nós ostentando triunfante o seu rádio Phillips. Conseguira!

A sua perseverança dera resultado! O Zéquinha conseguira engraxar dezenas de sapatos, conseguira resistir a todas as provocações e rejeições. A todo o desprezo e escárnio, e ultrapassara a adversidade!



Quando olho para trás agora, e vejo a idade que ele teria, imagino o meu filho Francisco que tem agora 10 anos. E imagino-o naquela situação, rondando os cafés e pedindo o favor de engraxar os sapatos, o favor de se ajoelhar perante os afortunados com dinheiro para cafés, cigarros, bolos e pastilhas e é difícil evitar que as lágrimas me caiam, é difícil evitar a pena, a raiva de toda aquela situação!

É difícil evitar pensar que deveríamos todos ter feito alguma coisa naquela altura. Eu teria a obrigação de saber mais sobre o Zéquinha, de saber o que necessitava, onde morava e o que poderia fazer para que o Zéquinha tivesse uma infância menos infeliz, mais próxima do que era suposto uma criança ter.

Todos esperámos que os outros o fizessem, que entidades assumissem o seu dever, que uma qualquer força etérea viesse em seu auxílio.

Deveria ter agido! E não fiz! Não o fizemos todos!

Um ano depois eu fui para Lisboa.

Fui vendo o Zéquinha mais espaçadamente e notei alguma degradação física. Disseram-me que tinha começado a andar com más companhias e andava a cheirar cola. Eu vira na Tv algo sobre o assunto referente aos moleques de rua no Brasil e pensava que era um fenómeno muito localizado. Estava completamente a leste do assunto e pensei que era uma fase. Que mais tarde ou mais cedo, o Zéquinha entraria no caminho correcto.

No caminho correcto! É tão bom quando nos confortamos com um bom pensamento e com um laivo de esperança e nos alheamos dos problemas. É tão bom quando podemos seguir em frente e deixar as incorrecções do mundo para com Deus ou outros. É tão bom poder dormir sem escrúpulos, sabendo que fizemos a nossa parte que é não fazer mal aos outros e tratar toda a gente com respeito, que é não roubar, nem ser desleal, que nem conseguimos ver a verdadeira realidade.

E escudamo-nos em frases feitas e ideias pré-concebidas, em exemplos raros de sucesso sem atender às estatísticas, à realidade da vida. A vida verdadeira, não a vida dos filmes e novelas em que os maus são maus e os bons são bons e que os maus pagam sempre e que os bons são sempre compensados.

A vida é cinzenta, todos somos santos e pecadores e quem diz que o sol quando nasce é para todos então deveria de ver o negrume de muitos dias em que o sol não nasceu e em que muitos ficaram à espera!

O Zéquinha conheceu um dia o Natal mas ele nunca mais voltou.

Imagino o meu filho sem ajuda, numa família desestruturada, sem dinheiro nem para tomar o pequeno-almoço numa altura em que as escolas ainda não tinham programas de apoio, sem dinheiro para livros nem exemplos em casa. Sem ajuda nos estudos nem um adulto que o aconselhasse, o rectificasse, lhe puxasse as orelhas ou lhe desse um beijo.

Sem um estímulo, um incentivo, um afecto!

Canso-me de ver expostos os exemplos dos que subiram a pulso na vida. São exemplares mas estudando a fundo cada situação verifica-se sempre que houve em determinada altura um apoio, um golpe de sorte, algo que os impulsionou. Mas canso-me sobretudo de tomarem a árvore pela floresta, de pensar que o Zéquinha teria sempre a obrigação de evitar as ameaças da vida, de evitar as tentações, de evitar os maus exemplos que lhe eram dados pelos únicos que o acompanhavam.

Uma criança sem afectos, sem apoio, sem dinheiro, sem educação, sem nada!

É tão fácil nesta situação tomar o caminho mais fácil, por vezes o que parece ser o mais feliz, o caminho da alienação, da alheação da realidade, o caminho dos sonhos! Do já não quero saber!

Hoje encontro o Zéquinha com mais frequência. Ele não me reconhece ou parece não me reconhecer, mesmo quando lhe sorrio.

Os outros parecem condená-lo. Parecem culpabilizá-lo pelo caminho que tomou como se ele tivesse tido opções. Muitos estarão dispostos a refutar a minha opinião, contestando-me com a verdade dos exemplos, os tais exemplos que são uma gota de água no oceano. Mesmo quem passou pela negritude dos dias me dirá que há sempre opção.

Talvez haja. Agora! Não naqueles dias de infância perdida, não naqueles dias de dez ou doze ou catorze anos de idade em que a experiência de vida era nula e quando a vida nos parece um longo caminho de penitência até ao dia de partir.

Talvez agora haja opções. Se o Zéquinha ainda tiver forças para lutar e vontade de recomeçar e se sobretudo lhe dermos essas opções.

Opções que não lhe foram dadas quando foi preciso.

E talvez, talvez, possa haver um outro Natal para o Zéquinha. Tão feliz como aquele de há trinta e tal anos!




O Zéquinha é um nome fictício, vocês sabem. A dignidade humana deverá ser sempre preservada a todo o custo. Todos temos o direito ao bom nome e ninguém, no que respeita à dignidade humana, tem um valor menor perante a sociedade enquanto merecer viver nessa mesma sociedade.


Band Aid - Do They Know It's Christmas - 1984

Feliz Natal para todos e não se esqueçam de apoiar a Oeste Solidário e a Operação Gorro Verde. Para que não hajam mais Zéquinhas!

FRAGMENTOS DE MEMÓRIA I


Ao escrever Praça da Fruta outras memórias me surgiram. As recordações são como um novelo por desfiar!

A Góia não foi a primeira loja do João e do Adelino. Na realidade eles começaram numa loja situada num primeiro andar de um  prédio da Praça do Peixe e posteriormente tiveram uma outra loja num prédio muito antigo do outro lado da rua onde se localizava a Góia. Vendiam roupa quase ao desbarato e que se expunha empilhada sobre caixas, mesas e balcões, também servia esta loja para despachar os restos de colecção e os monos da Góia. O nome da loja conforme recordou o Chico-Zé Ferreira era ‘’Bom Preço’’ mas a minha mãe referia-se a ela como sendo o ‘’barateiro’’.

Ao lado ficava a loja dupla do JL Barros. Do lado esquerdo ficava a secção de artigos de pesca, a área de espingardaria e de venda de taças para competições desportivas.

Na montra eu admirava as raquetes de ténis da Tretorn, Slazenger, Wilson (Jack Kramer, Matchpoint), Dunlop (Maxplay), Prince, Donnay e Spalding. A minha primeira Tretorn, uma pequena raquete adequada aos meus 6 ou 7 anos foi comprada aí. Posteriormente passei a comprar o equipamento de ténis, sobretudo raquetes e bolas, num primeiro andar sobre, salvo erro, a ourivesaria da praça, antes da Frami.

Lembro-me quando o meu pai me comprou a minha primeira (e última!) cana de pesca no JL Barros, e que era pequena, fininha e branca, comprei também no momento, o isco, pois quis ir logo pescar para o cais da lagoa. As minhocas vinham ainda na lama embrulhada em papel de jornal!

Do outro lado ficava a restante zona de venda, sobretudo de vestuário e calçado desportivo que se estendia ao primeiro andar e até à rua das traseiras. A particularidade desta loja é que tinha um balcão de pagamento autónomo com uma caixeira. Mesmo ao lado da porta de saída. Uma originalidade que hoje vimos em algumas farmácias mas que era pouco comum nas Caldas.

Mais abaixo ficava uma loja de móveis e de alcatifas e depois da Cascata, o talho do Sr. Silvino que mereceu, coitado, muitos telefonemas nossos a perguntar se tinha pés de porco e mãos de vaca!

Voltando à loja inicial do João e do Adelino, o prédio não tinha placa e o tecto da loja começava a ficar abaulado. Contudo nada que se comparasse com o tecto da sapataria Macadi (de MArio CArvalho DIas) que tinha alguns tectos já muito curvados como se recordam certamente a Mizá e o Graciano que estão por aqui neste grupo.

E voltando de novo à Góia, posteriormente foi aberta uma segunda casa, que ainda existe, no edifício Franjinhas, na Rua Braancamp em Lisboa.

Uma das funcionárias da Góia (não me lembrava do nome mas o Chico-Zé lembrou-me que era Alice) viria a abrir a discoteca Queen’s que ficava na Rua Heróis da Grande Guerra onde agora é a Lanidor ou ao lado e que já foi um restaurante chinês.

Ao cimo da praça, na Calçada Frei Jorge de São Paulo, existia um funileiro. Um dos últimos que me lembro, os outros eram na Travessa da Cova da Onça, ao cimo da Rua de Jardim ou já na Cap. Filipe de Sousa,, na Rua do Jasmim, perto do C.C. da Avenida e outro na Rua António Lopes Júnior. Provavelmente espalhados pela cidade haveriam outros.

Também ao cimo da Praça e por trás do posto da PSP ficava o quartel da GNR e as suas cavalariças, de que ainda resta o portão. Davam para a Rua Diário de Noticias diante das estrebarias que ficavam sob os prédios do inicio desta rua. A GNR tinha um corpo equestre, o equivalente aos Subaru de agora!

Pelo menos não tinham de andar com uns lenços a tapar a boca e o nariz por causa dos fumos no habitáculo! Os odores eram outros!

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

PRAÇA DA FRUTA



I

Percorro a Praça da Fruta e penso o quanto é vital para a cidade. Ela é o coração que irriga energia para as outras artérias, o pólo de atracção que encaminha as pessoas para o centro e daí as reconduz pelas várias ruas circundantes. Facilmente reparamos na quietude do centro da cidade após terminar o mercado, lá para as duas da tarde.

Sempre foi assim, desde os tempos em que era a Praça do Pelourinho (demolido já no século XIX), Praça do Comércio e Rossio da cidade até ser calcetada com o patrocínio de Faustino da Gama no século XIX e passar a chamar-se Praça D. Maria Pia. Com a instauração da República passou a denominar-se Praça da República. Mas sempre foi, e sempre será a nossa Praça da Fruta.

A praça é muito mais que o ex-libris da cidade. Na realidade só o é nas horas da realização do mercado. São as gentes que vendem as frutas e os hortícolas, as flores e as vergas, as cerâmicas, os enchidos, os queijos e os bolos que dão colorido à praça e que são realmente importantes para a vitalidade e divulgação da cidade.

No dia em que a praça da fruta desaparecer, em nome de uma qualquer modernidade, a cidade morrerá. Vão por mim.

Só quem fez vida fora da província, só quem faz a vida num grande subúrbio percebe o perigo eminente que paira sobre a nossa cidade.

Se um dia se impuser, a troco de melhores condições de higiene, segurança e de conforto a mudança do mercado para um recinto fechado e em simultâneo se instaurar ainda maiores centros comerciais na cidade, esta vai mudar, vai perder identidade e sobretudo vai perder vida, a vida que é gerada todos os dias pela realização do mercado.

Contra mim falo que beneficio profissionalmente do aparecimento de novas grandes superfícies, mas talvez por isso, por ter vivido tanto a situação de outras cidades sei os perigos que acarreta para uma pequena cidade, uma tão grande modificação nos hábitos quotidianos.

A troco de uma modernidade representada pelo surgimento de umas dezenas de lojas de marca, as pessoas mudam. E mudam drástica e inexoravelmente.

As visitas a um centro comercial de grandes dimensões passam a servir como actividade lúdica substituindo os reencontros nas ruas, nas praças, nos cafés, no parque. Passam a servir como actividade ‘’cultural’’ roubando tempo livre às visitas a museus e exposições. Passam a servir como actividade desportiva, sobretudo quando as populações, vestindo os seus fatos de treino de marca, decidem ir fazer jogging para o shopping e seus supermercados.

Viram? Ainda nem mencionei a razia que se faz no comércio tradicional e ruas sem comércio são ruas sem vida, sem segurança, sem atracção.

Eu não sou contra os shoppings quando devidamente enquadrados na cultura de uma cidade e não como normalizador dos hábitos populacionais. A sua presença é útil quando gera mais do que actividade comercial, como centro de cultura e de lazer que complemente a cidade mas que não substitua o que a caracteriza, o que a individualiza.

Uma combinação perigosa de factores de risco paira sobre as Caldas. Imaginem a nossa cidade sem o seu mercado diário e com o centro esvaziado de uma população que passa a correr para o shopping.

Caldas morrerá. Passará a existir uma outra cidade com o mesmo nome, em nada diferente a uma cidade dos subúrbios de Lisboa. Descaracterizada, meramente habitacional, sem vida!

Os passeios à Foz e S. Martinho, à Nazaré, Alcobaça e Peniche serão substituídos por idas ao shopping. Não acreditam? Perguntem o que aconteceu à Figueira da Foz após a abertura dos shoppings em Coimbra, o mesmo à linha do Estoril, Sesimbra, foz do Porto.

Os encontros diários com os amigos nos cafés e praças passarão a ser substituídos por encontros ocasionais nos pisos dos shoppings e todos deixarão de confluir à praça da fruta alimentando as artérias circundantes. Não acreditam? Então porque é que as outras ruas das Caldas estão já hoje vazias? É verdade que está instalada uma crise económica que faz diminuir o consumo mas queremos nós potenciar ainda mais o fecho de mais lojas de rua, apresentando o desolador aspecto que descaracteriza e nada dignifica a nossa cidade?

No dia em que a Praça da Fruta morrer passará a ser apenas a Praça da República, a versão pós 14h00 do nosso Rossio. Bonita, já descaracterizada do ponto de vista arquitectónico e sobretudo sem as pessoas que lhe dão vida.

Os que nos visitarem encontrar-nos-ão nos modernos centros comerciais. Não verão ninguém a caminhar pelas ruas e francamente, se vierem de grande metrópole, sentir-se-ão mais do que nunca em casa!

E depois o nosso ex-libris serão algumas lindas balconistas das lojas de marca de um grande centro comercial. Não terão rugas nem marcas de uma vida de trabalho no campo, serão perfeitas com todas as certificações ISO9000 e atestados da ASAE mas serão certamente esquecidas em muito menos tempo!



II

É sábado de manhã, o meu momento preferido da cidade. Reencontro os amigos e sei das novidades, compro aquilo que só a praça me dá e esvazio a cabeça do stress da semana. Hoje não vou ter que ir para Lisboa, hoje posso desfrutar da qualidade de vida que consigo manter para o resto da família.

Venho do lado do Chafariz e uns passos adiante, de uma posição ligeiramente mais elevada, contemplo a praça na sua plenitude. A minha memória volta de novo atrás no tempo.

Contorno os baixos edifícios que moldam o lado este da praça e onde no século XIX e anteriores existiu a ermida de Nossa Senhora do Rosário, demolida cerca de 1834. Voltei mesmo atrás no tempo, tenho agora a certeza pois já não existem estas casas, uma drogaria, uma ourivesaria,  e o que existe agora em 2010 é um inexplicável parque de estacionamento que deforma o topo da praça.


Desço à praça e percorro-a pelo lado esquerdo, de este para oeste. Passo a loja de ferragens e pelo Banco e pelo café Central, vejo jovens a saírem da porta que dá acesso à cave do café depois de um jogo de bilhar. Passo  a loja de tecidos a metro, mantas e colchas do Sr. Carvalho, avô do Pedro e do Ricardo Ferreira, vejo crianças a entrarem na Pelicano para procurarem pequenos cartões de horários escolares para a colecção e chego à confluência com a Rua da Liberdade. Admiro umas pandeiretas que estão penduradas à porta da casa Girão e ainda entro nessa rua para admirar nas montras da loja seguinte os aparelhos de pesca, as miniaturas e os kits de montar da Revell, Heller, Airfix, Tamiya, Hasegawa e Matchbox. Uma das lojas que mais me fascinam!

Retorno à Praça da Fruta e tenho de ziguezaguear entre os populares encostados na parede do armazém de apoio à farmácia Freitas, cuja fachada dá para a praça, e os quatro ou cinco engraxadores que se alinham à sua frente, mesmo antes do Banco de Portugal.

As minhas memórias vão e vêem no tempo e este anda para trás e para a frente. Passo à Polana e encomendo um livro para a escola e cumprimento o meu tio-avô Joaquim Baptista à porta da sua loja.

Ao lado, na Rua do Parque, sobem e descem burros a caminho das suas estrebarias. O cheiro é característico como o que encontrei no cimo da praça junto aos edifícios do antigo Hotel Rosa.

Diante de mim está agora o café Lusitano, entro para comprar cigarros, cumprimento o Sr. Silvino e o Sr. Silva. No café ao lado, o Flor de Lis, vejo mais caras conhecidas.


O tempo volta de novo para trás e estou a entrar nos Grandes Armazéns do Chiado, subo a um piso de cima para admirar os brinquedos que não encontro em mais nenhuma casa da cidade, nem mesmo as lojas da Rua das Montras, a Tália, o Turita ou a Átila têm brinquedos assim.


O tempo volta a adiantar-se, desço um pouco abaixo para passar diante da Bongosto, a loja de frivolidades e ver as minhas irmãs a comprarem contas e missangas para fazerem uns colares para venderem às amigas da minha mãe. Passo diante do Talho Central do Sr. Nogueira, aceno à Vanda e passo para o outro lado da rua. Hoje tenho uma consulta com o Dr. Mário de Castro. O seu consultório fica por cima  da loja de roupas do Sr. Neto, pai do Zé, que foi meu professor de ginástica no liceu, e da Célia. À esquerda desta loja fica uma outra que vende sementes. Do outro lado da porta de entrada fica a drogaria. Cruzo-me com o Henrique que traz as compras da esposa do estimado médico, a D. Rita, da Zaira para o consultório. A sua cabeça contorce-se no seu gesto incontido enquanto me cumprimenta.

Mais para a frente, ao fundo da praça estão os armazéns de mercearias de José Gomes Rodrigues e as lojas de móveis do Sr. João Ramos na esquina com a Rua Dr. Júlio Lopes. Nesta rua abriu a primeira verdadeira boutique das Caldas, a Góia. Vêm clientes de todo o lado para comprarem peças de vestuário exclusivas ou que só podem ser encontradas em Lisboa.

Um pouco mais abaixo na mesma rua, ao lado do talho abriu um restaurante, a Cascata, da D. Gina, cuja atracção principal é mesmo uma pequena cascata no centro da sala.


Quando saio do consultório é quase uma da tarde e por momentos o tempo avança ao passar diante da loja do Armando Maria ‘’Ça Va’’, a Belle Epoque, que mais tarde mudou o nome para Julio's. Antes havia aqui um armazém de mercearias. Segue-se uma pequena loja de electrodomésticos e umas portas à frente o Convivio acabado de abrir.

Cumprimento o Sr. Manel Enxuto que me pergunta se gostei do jantar da véspera. O Convivio, acabado de abrir, tinha como grande atracção um bife à Convivio com molho de café e umas entradas de camarão-tigre de que só ouvira falar aos meus amigos regressados de Moçambique.

O tempo continua a fazer das suas e passo diante da Padaria Taboense e do Banco Pinto de Magalhães, estou de volta a um passado mais distantes quando aí existiam dois edifícios com a volumetria correcta.



Chego diante da Farmácia Central, o Sr. António avia pacotes de papel de bicarbonato de sódio, e sentado pacificamente num banco está o Sr. Ferreira, decano da cidade e prestes a completar 100 anos.

Vou pesar-me na curiosa balança fazendo os pesos deslizar pelas varetas horizontais para contrabalançar o meu peso. Divertida forma de verificar o meu peso. 57 quilos! Não há dúvida que estou de volta ao passado!

No primeiro andar do prédio devoluto ao lado da farmácia ficava o salão de cabeleireiros de Casimiro Campos Silva e gerido pela sua prima Estrela. Casimiro e a sua mulher Maria Adelaide Saguer são um dos casais mais famosos nas Caldas pela sua vivência com o jet-set. O cabeleireiro chegou a pentear algumas estrelas de cinema e membros da realeza europeia.

Chego à Zaira. À porta, junto à balança que serve para pesagens públicas (com moedas de cinco tostões) está encostado o taxista que vive por cima do café. O seu táxi está como habitualmente estacionado diante da câmara municipal, mesmo antes da passadeira e junto aos semáforos, recentemente colocados para regular o trânsito que vem da rua das montras.

No lugar daquela balança esteve durante muitos anos um engraxador que a pedido dos fregueses da Zaira ia engraxar os seus sapatos enquanto estes tomavam café sentados a uma mesa.


A Zaira a esta hora ainda tem alguns dos seus habituais frequentadores. Na mesa de entrada junto à janela, o Dr. Calheiros Viegas e o Prof. Barreto, meus ídolos no ténis pela pujança na sua veterania, conversam em amena cavaqueira enquanto desfolham o Diário de Noticias e a Bola, ambos os jornais do tamanho de lençóis! Mais atrás numa outra mesa o Dr.Alcino Coelho e o Dr. Augusto Saudade e Silva. O João e o Jorge rendem agora o Romão. Entro rapidamente para cumprimentar alguns amigos que decidiram almoçar o pequeno–almoço standard da Zaira.

Num cartão amarelo por baixo dos tampos de vidro das mesas pode ler-se : galão ou chá, pão, torradas ou croissants, compota, geleia ou mel (que são servidas em tacinhas de vidro) e manteiga (que chega num pires enrolada em pequenos rolos). As memórias do Sr. César Tempero e mais tarde do Sr. Januário vêm-me à cabeça quando o tempo de novo avança.

Saio apressadamente, tenho de aguardar a luz verde de peão para atravessar a rua das montras e rapidamente passo diante da casa que vende bombas agrícolas e pela casa Monteiro.

Ouço o pregão de fundo do velho Henrique, o mais popular ardina da cidade. Descortino-o no meio da praça junto à banca de queijos da mãe da Luisa Jordão. Ali está ele com o seu habitual fato de macaco de sarja azul e a sua boina basca. Ao canto da boca a eterna beata. Nessa tarde, como em tantas outras, encontrá-lo-ei a vender jornais no parque e a gritar na sua voz de bagaço : Olhó República, Popular, Capital, Lisboa , enquanto nos piscava o olho malandro!

Só anos mais tarde percebi a sua ironia!

Passo ainda por outras lojas de tecido a metro e vestuário de baixo preço e diante de mais um prédio que irá ser demolido, era onde ficava o armazém de mercearias Frias & Gonçalves, o que virá a seguir?

O encontro com mais um amigo detém-me no passeio e fico a admirar a praça no seu esplendor. Absorvo as essências e os sons que emanam do terreiro. Sinceramente agrada-me todo aquele colorido. Diante de mim está a mãe da minha colega Mila Ferreira e a sua banca de cerâmica regional.

Um carro com altifalantes passa a anunciar as 20 voltas em ciclismo às Gaeiras cujo percurso se faz passando a praça, subindo a Rua Diário de Noticias em direcção ao Imaginário, Matoeira, virando à direita para as Gaeiras e virando aí de novo à direita pela estrada nacional até às Caldas, passando pelo moinho Saloio, quartel e Rainha.


Os nomes de Firmino Bernardino, Fernando Mendes, Venceslau Fernandes, Joaquim Andrade e outros são gritados em destaque. Melhor só os carros que anunciam as touradas!

Eu sou mais fã do automobilismo e uma vez por ano a praça assiste à passagem dos concorrentes ao Rallie de Portugal-Vinho do Porto.

Sigo a caminhada na companhia do amigo, passo em frente da Ourivesaria do Sr. Augusto e da Frami. A Carolina e a América afadigam-se a atender os clientes, vendendo caixas de folhados por rechear, marmelada a quilo, drops e rebuçados, frascos de pêra em calda e bolos de todo o tipo.

Ao lado, o velho Silva Santos encerra a porta da sua papelaria, a loja com maior variedade de artigos de papelaria que possa existir nas Caldas mas ao mesmo tempo a mais anárquica em organização. Raramente saímos de lá com algo pretendido se não for algo de primeira necessidade, temos sempre que voltar ‘’um pouco mais tarde’’!

Passo diante do café Invicta, da casa Pardal e da Havaneza. Depois o Bocage. Vejo o Franco e o Sr. Bonécio e o Sr.Prego perto do balcão. Numa das garagens do pátio das traseiras, onde a família Jordão aluga quartos a enfermeiras e professoras, a Isabel Prego deu a sua última festa de anos antes de partir para Setúbal.

Atravesso depois a rua em frente da ermida de S. Sebastião e deparo-me com a entrada para as escadas que dão para o wc público subterrâneo que dá apoio aos feirantes, ao lado das escadas, a placa de pedra dando indicação dos quilómetros para a Matoeira.

Nesse ano a Gazeta das Caldas publicou como mentira do dia 1 de Abril que estava a ser construído o Metro nas Caldas e a primeira linha seria para a Matoeira. Quem via pela primeira vez aquelas escadas e a placa da Matoeira corria as ruas da cidade elogiando a iniciativa camarária!

Ao lado da entrada do wc e encostado à parede da ermida está o casinhoto de madeira onde trabalha um engraxador, no passado trabalhavam aí vários, lado a lado.

Regresso ao ponto de partida, o meu tempo volta a ser o presente. As pessoas, os lugares e os eventos voltam a fazer parte do passado. Não há lugar à nostalgia, apenas a experiência e recordação de quem presenciou e continua a presenciar os acontecimentos. A modernidade e a melhoria da qualidade de vida devem ser recebidas de braços abertos e devidamente enquadradas na cultura de cada lugar.

As pessoas que partiram serão devidamente recordadas e homenageadas e outros tomarão os seus lugares na memória das novas gerações, os lugares serão gradualmente substituídos por outros mais adequados às necessidades e hábitos que se forem desenvolvendo.

Mas há algo perene e que será sempre insubstituível. A alma da cidade!

Uma vez perdida não seremos mais do que um qualquer subúrbio puramente habitacional sem nada que nos una, que nos prenda, que nos faça sentir orgulhosos e únicos.


Fonte de histórico: ''Praça da Fruta'' de Carlos Marques Querido




Nota: O João Miguel Cortez recordou, e bem, que a loja na Rua da Liberdade que vendia os kits de montar, os aparelhos de pesca, as miniaturas de automóveis, etc, era do Sebastiãozinho, uma figura característica pelo seu bigode à escovinha e a sua voz anasalada. Lembrou também que o taxista que vivia por cima da Zaira era o Sr. Virgilio.