segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

UM CONTO DE NATAL




UM CONTO DE NATAL

I

Todos nós tivemos um Natal mágico. Um Natal que nos ficou na memória como uma marca indelével do passado.

Para mim foi o Natal de 1968. Nesse ano eu apanhei varicela poucos dias antes e nessa noite fervia em febre para minha grande decepção que esperava por essa noite com enorme expectativa quer pela abertura dos presentes quer pelos momentos de brincadeira com os meus primos.

Tradicionalmente passávamos a Consoada em casa dos meus avós paternos na companhia dos meus tios, primos e tio-avós.

Então a minha mãe embrulhou-me numa manta e levaram-me ao colo para casa dos meus avós a poucas centenas de metros de distância. Tive de passar a noite de Natal deitado num sofá vendo com tristeza e inveja as minhas irmãs e primos nas correrias pela casa.

Pouco antes da meia-noite começaram a distribuição de presentes e com ansiedade aguardámos o momento da entrega dos oferecidos pelos meus avós que eram sempre os melhores.

Naquela altura recebíamos um presente por casa pelo que recebíamos no máximo uns três ou quatro por ano e eu recordo-me de todos os  que recebi dos meus avós em todos os Natais até esse ano de 1968.
 


Os presentes iam sendo entregues e eu e a minha prima Paula constatámos com tristeza que não tínhamos recebido nesse Natal qualquer presente dos meus avós. Contudo, não fizemos nenhum comentário e não nos apercebemos dos sorrisos maliciosos dos adultos.

Pouco depois mandaram-nos sair da sala para cumprir uma qualquer tradição e as luzes apagaram-se por instantes. Nos dias seguintes eu jurava aos meus colegas de jardim-escola que as luzes se tinham apagado apenas por um segundo e na minha memória realmente ainda me parece que foi tudo num ápice. Assim, um segundo depois, as luzes voltaram a acender-se e junto á enorme árvore de natal, sempre a maior e melhor decorada que eu já vi, apareceram duas bicicletas vermelhas de tamanhos diferentes. Eram os nossos presentes!

Naquele Natal tive o presente mais ansiado e aquela bicicleta durou anos.  Quando no Outono de 1973 me mudei para o Burlão a pequena bicicleta ficou para trás, não havia lugar para ela na nova casa e provavelmente os meus pais ofereceram-na a alguma instituição.



Só muitos anos mais tarde senti no rosto de alguém uma felicidade tão plena ao receber um presente como a que eu vivi naquele dia. O presente era tão insignificante perante aquela bicicleta e contudo para quem o recebeu era, naquele Natal, o mais valioso dos tesouros do mundo.

Naquele Natal aprendi duas lições.
Não é o valor das coisas que possuímos que nos dá a felicidade e que existem poucas coisas que nos poderão trazer  tanta alegria como aquela que sentimos perante a felicidade que vimos em alguém a quem damos algo verdadeiramente importante.






II

''Ele acorda momentos antes da chegada do Espírito do Natal Passado, uma criança fantasma com uma cabeça brilhante. O espírito acompanha o rabugento Scrooge numa viagem ao passado. Invisível para aqueles que ele vê, Scrooge revisita os seus dias de escola na infância, o seu aprendizado com um alegre comerciante chamado Fezziwig, e o seu noivado com Belle, uma mulher que deixa Scrooge porque o seu desejo por dinheiro se sobrepõe à sua capacidade de amar. Scrooge, profundamente comovido, derrama lágrimas de arrependimento antes do fantasma o trazer de volta à sua cama. ''

Charles Dickens - A Christmas Carol


II


Foi há mais de trinta anos. Mas eu nunca esqueci!

Eu deveria andar pelos meus 15 ou 16 anos e fazia da Zaira um dos meus pontos de encontro preferidos. De manhã ou à tarde, nos intervalos ou no fim das aulas encontrávamo-nos todos naquele café da praça, que foi o nosso quartel durante quase duas ou três décadas. Para alguns, uma herança vinda dos pais e até dos avós.

Sentávamo-nos geralmente ao fundo, de preferência nas mesas atrás do arco à esquerda, onde conseguíamos ver quem chegava antes mesmo de sermos vistos e onde os que fumavam às escondidas estavam a salvo.

Numa época sem telemóveis nem rede sociais via net, a Zaira, como foi para outros o Convívio, a Taiti, o Central, , o Camaroeiro, a Maratona, o café do Diamantino e da Ema ou o Café Creme no Bairro da Ponte ou durante o dia o Machado ou o Gato Preto, era o porto seguro, onde sabíamos ir encontrar os amigos a determinadas horas.

Era mesmo para quem chegava de fora, a certeza de reencontrar as velhas amizades ou saber de tantas outras.

Não telefonávamos, nem corríamos para um computador, que não existia. Apenas nos metíamos a caminho com a certeza do encontro.

Ali estudávamos, até nos proibirem de o fazer por estarmos a ocupar as mesas sem fazer consumo. (Um palito, um jornal e um copo de água, costumava dizer o João Gancho quando o abordavam). Ali começámos namoros, ali discutimos ideias e soubemos os mexericos. Ali nos ficávamos nas divertidas manhãs de sábado ou nas bucólicas tardes cinzentas de Inverno e dali partíamos nas noites de sexta e sábado em direcção a Óbidos, a S. Martinho ou à Foz, procurando os bares e as discotecas da época.

Eramos um grupo sólido mas muito grande e heterogéneo, era a malta da Zaira! Fieis polidores das paredes da Câmara Municipal fronteira e exímios testadores das suspensões e rigidez dos capots dos veículos estacionados em frente.

Fazíamos piscinas à Praça e à Rua das Montras e sortidas aos bilhares do Camaroeiro mas à hora de partida regressávamos à base, como os pombos do parque voltavam aos telheiros do Liceu.

Teríamos todos entre 14 e 25 anos, depois aparecia já a geração dos pais. Era raro aparecer uma criança sozinha, então à noite eu diria quase impossível.

Não me recordo porém quando apareceu o Zequinha pela primeira vez pela Zaira.

Era um miúdo muito franzino, até demais para a sua idade que era bastante indefinida. Ele nunca nos disse a sua verdadeira idade mas nós calculávamos que o fazia apenas para sua defesa. Não teria mais de 9 ou 10 anos.

O Zequinha chegou e de imediato se tornou a nossa mascote.

Quando perguntava a sua origem contavam-me diferentes histórias e na realidade julgo que ninguém o sabia verdadeiramente ou o procurou saber.

A versão que me foi contada falava-me de uma mãe que morrera e de um pai longe ou incapaz, diziam-me que o Zequinha e os seu irmãos estavam ao cuidado da irmã mais velha, de uns 14 ou 15 anos embora legal e oficialmente aparecesse registada a avó. Não sei se era realmente assim mas a história não poderia ser muito diferente, a avaliar pela forma como aparecia, sozinho, faminto e jovem, muito jovem, demasiado jovem. Uma criança!

O Zequinha para fazer algum dinheiro, com a dignidade que mantinha, e porque não pretendia viver dos bolos e sandes que lhe davam, decidiu arranjar uma caixa de sapatos, frascos de graxa e panos velhos e escovas e pedia-nos que o deixássemos engraxar os sapatos, como era habitual naquele tempo, existindo mesmo um pequeno batalhão de engraxadores do outro lado da praça.

E nós, entre a vergonha de o pôr nessa tarefa e a vontade de o ajudar, acedíamos a esse desejo, fazendo com isso o seu ganha-pão.



Muitos, na inconsciência da sua juventude, pregavam-lhe partidas, não lhe pagando os serviços, escondendo-lhe a caixa com as pequenas moedas de trocos e houve alguém, definitivamente mal-intencionado, que lhe roubou os ganhos de um dia.

Nessa noite o Zequinha chorou desalmadamente, chorou como eu nunca o tinha visto chorar!

Chorou não de auto-comiseração mas de raiva perante a vida, de desilusão perante os outros.

Infelizmente, o miúdo começou a aprender depressa e muito cedo que a vida não favorece os melhores nem os mais desprotegidos, a vida é uma lotaria aleatória que podemos forçar em nosso propósito mas no fim é sempre uma questão de sorte ou azar que nos fará feliz ou infeliz. Consigamos atingir ou não os nossos objectivos, existem sempre factores que não dominamos e que em qualquer altura nos podem cair em cima, deitando por terra tudo o que construímos seja material seja espiritualmente.

Logo ali nos juntámos e reunimos alguns cobres para atenuar a infelicidade do rapaz, já nessa altura afirmava que o dinheiro se destinava a ajudar a família, os seus irmãos. E nós não víamos razão para não acreditar!

Levávamos o Zequinha atrás para todo o lado, excepto para a vida nocturna. Lá para as dez da noite recambiávamo-lo para casa, julgo que no bairro dos Arneiros, e só então a sua figura franzina, os seus olhos estrábicos e os seus tiques nervosos, se afastavam de nós, uma caricatura de família e de grupo de amigos que parecíamos personalizar.

Chegou o Natal, talvez de 1980 ou 81. O Zequinha veio ao pé de nós com uma caixa de cartão e um ainda maior empenho em nos engraxar os sapatos.

- Quero comprar um transístor! Não, um rádio daqueles maiores em que eu posso apanhar todas as estações e que funciona a pilhas! – explicou-nos ele.

- E quanto custa isso? – perguntámos.

- Cento e vinte escudos!

- É pá! - disse o José Vargas colocando-lhe a mão ao ombro e fazendo aquele seu habitual sorriso irónico. – Vais ter muito que foçar! A cinco tostões a engraxadela vais ter que alargar o teu metier aos outros cafés se não, não te safas!

Mas o Zé, que atrás daquele ar de gozo permanente tem muito bom coração, começou de imediato a cravar toda a gente para ajudar o Zéquinha.

O miúdo, mesmo assim teve de trabalhar no duro mas todos os dias chegava ao pé de nós, com as suas contas e sentia-se feliz, cada vez mais perto do objectivo. Um sorriso de esperança invadia-lhe agora o rosto!

Era Natal! Era isto que era suposto acontecer!

Grão a grão, sapato a sapato, o Zéquinha foi angariando as moedas necessárias para comprar o seu rádio. Muitos ajudavam-no dando-lhe uma gorjeta. Muitos gozavam-no, escondiam-lhe a caixa, pediam-lhe dinheiro emprestado para o café, dinheiro que não devolviam. Mas apesar da falta de generosidade de muitos, do sarcasmo de outros, dos adultos que o mandavam para casa e para a escola mas que o não ajudavam, apesar de todas as dificuldades, um dia foi Natal para o Zéquinha!

Um dia, a criança chegou ao pé de nós ostentando triunfante o seu rádio Phillips. Conseguira!

A sua perseverança dera resultado! O Zéquinha conseguira engraxar dezenas de sapatos, conseguira resistir a todas as provocações e rejeições. A todo o desprezo e escárnio, e ultrapassara a adversidade!



Quando olho para trás agora, e vejo a idade que ele teria, imagino o meu filho Francisco que tem agora 10 anos. E imagino-o naquela situação, rondando os cafés e pedindo o favor de engraxar os sapatos, o favor de se ajoelhar perante os afortunados com dinheiro para cafés, cigarros, bolos e pastilhas e é difícil evitar que as lágrimas me caiam, é difícil evitar a pena, a raiva de toda aquela situação!

É difícil evitar pensar que deveríamos todos ter feito alguma coisa naquela altura. Eu teria a obrigação de saber mais sobre o Zéquinha, de saber o que necessitava, onde morava e o que poderia fazer para que o Zéquinha tivesse uma infância menos infeliz, mais próxima do que era suposto uma criança ter.

Todos esperámos que os outros o fizessem, que entidades assumissem o seu dever, que uma qualquer força etérea viesse em seu auxílio.

Deveria ter agido! E não fiz! Não o fizemos todos!

Um ano depois eu fui para Lisboa.

Fui vendo o Zéquinha mais espaçadamente e notei alguma degradação física. Disseram-me que tinha começado a andar com más companhias e andava a cheirar cola. Eu vira na Tv algo sobre o assunto referente aos moleques de rua no Brasil e pensava que era um fenómeno muito localizado. Estava completamente a leste do assunto e pensei que era uma fase. Que mais tarde ou mais cedo, o Zéquinha entraria no caminho correcto.

No caminho correcto! É tão bom quando nos confortamos com um bom pensamento e com um laivo de esperança e nos alheamos dos problemas. É tão bom quando podemos seguir em frente e deixar as incorrecções do mundo para com Deus ou outros. É tão bom poder dormir sem escrúpulos, sabendo que fizemos a nossa parte que é não fazer mal aos outros e tratar toda a gente com respeito, que é não roubar, nem ser desleal, que nem conseguimos ver a verdadeira realidade.

E escudamo-nos em frases feitas e ideias pré-concebidas, em exemplos raros de sucesso sem atender às estatísticas, à realidade da vida. A vida verdadeira, não a vida dos filmes e novelas em que os maus são maus e os bons são bons e que os maus pagam sempre e que os bons são sempre compensados.

A vida é cinzenta, todos somos santos e pecadores e quem diz que o sol quando nasce é para todos então deveria de ver o negrume de muitos dias em que o sol não nasceu e em que muitos ficaram à espera!

O Zéquinha conheceu um dia o Natal mas ele nunca mais voltou.

Imagino o meu filho sem ajuda, numa família desestruturada, sem dinheiro nem para tomar o pequeno-almoço numa altura em que as escolas ainda não tinham programas de apoio, sem dinheiro para livros nem exemplos em casa. Sem ajuda nos estudos nem um adulto que o aconselhasse, o rectificasse, lhe puxasse as orelhas ou lhe desse um beijo.

Sem um estímulo, um incentivo, um afecto!

Canso-me de ver expostos os exemplos dos que subiram a pulso na vida. São exemplares mas estudando a fundo cada situação verifica-se sempre que houve em determinada altura um apoio, um golpe de sorte, algo que os impulsionou. Mas canso-me sobretudo de tomarem a árvore pela floresta, de pensar que o Zéquinha teria sempre a obrigação de evitar as ameaças da vida, de evitar as tentações, de evitar os maus exemplos que lhe eram dados pelos únicos que o acompanhavam.

Uma criança sem afectos, sem apoio, sem dinheiro, sem educação, sem nada!

É tão fácil nesta situação tomar o caminho mais fácil, por vezes o que parece ser o mais feliz, o caminho da alienação, da alheação da realidade, o caminho dos sonhos! Do já não quero saber!

Hoje encontro o Zéquinha com mais frequência. Ele não me reconhece ou parece não me reconhecer, mesmo quando lhe sorrio.

Os outros parecem condená-lo. Parecem culpabilizá-lo pelo caminho que tomou como se ele tivesse tido opções. Muitos estarão dispostos a refutar a minha opinião, contestando-me com a verdade dos exemplos, os tais exemplos que são uma gota de água no oceano. Mesmo quem passou pela negritude dos dias me dirá que há sempre opção.

Talvez haja. Agora! Não naqueles dias de infância perdida, não naqueles dias de dez ou doze ou catorze anos de idade em que a experiência de vida era nula e quando a vida nos parece um longo caminho de penitência até ao dia de partir.

Talvez agora haja opções. Se o Zéquinha ainda tiver forças para lutar e vontade de recomeçar e se sobretudo lhe dermos essas opções.

Opções que não lhe foram dadas quando foi preciso.

E talvez, talvez, possa haver um outro Natal para o Zéquinha. Tão feliz como aquele de há trinta e tal anos!




O Zéquinha é um nome fictício, vocês sabem. A dignidade humana deverá ser sempre preservada a todo o custo. Todos temos o direito ao bom nome e ninguém, no que respeita à dignidade humana, tem um valor menor perante a sociedade enquanto merecer viver nessa mesma sociedade.


Band Aid - Do They Know It's Christmas - 1984

Feliz Natal para todos e não se esqueçam de apoiar a Oeste Solidário e a Operação Gorro Verde. Para que não hajam mais Zéquinhas!

Sem comentários: