segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O SEGUNDO ANDAR DO DIOGO

A DOR QUE NÃO PASSA




Não existe nada pior na vida que a perda de entes queridos. Nada!


De acordo com os médicos, já tive que suportar algumas das piores dores físicas que nos é possível suportar. Ou devido a doença ou devido a acidente, já fui evacuado algumas vezes de ambulância para 100 kms de distância, já fui repatriado (é assim que se diz?) de outro país e já me encheram de morfina. Uma das vezes a dor foi tão forte que perdi momentaneamente os sentidos.


E contudo eu voltaria a passar de bom grado por cada um desses momentos se isso pudesse evitar a dor que sinto pela perda de alguém que amo.


A dor física infligida por uma lesão ou por uma infecção, pode ser fortíssima, pode-nos fazer gritar, espernear, esmurrar as paredes – eu sei, eu vivi isso! – mas tem um fim!


Por pior que tenha sido a dor, ela sempre passou. E de cada vez que isso me acontece, anima-me saber que mais tarde ou mais cedo, geralmente depois de uma nova cirurgia, ela irá passar.


Mas há uma dor que nunca passa!


Ao longo da vida perdi muitas pessoas que me eram queridas. Umas porque a vida as levou para longe, outras porque as perdi como amigas devido a algum gesto irreflectido e outras porque morreram antes de tempo.


As primeiras, tento-as recuperar fazendo uso às modernas tecnologias de comunicação, como o Facebook, e através dos reencontros pessoais ou em grupo. Estão a voltar a fazer parte da minha vida, como sempre deveria ter sido!


Esse reencontro é para mim muito importante, porque fazem parte do meu passado, da minha história. Escrevi um texto, ‘’Fragmentos’’ que podem encontrar no blog nos posts do mês de Maio, em que explico porque são para mim tão importantes os meus amigos. E penso sempre que se os amei e se apenas os acasos da vida os levou para longe de mim, então que estes acasos do avanço tecnológico da comunicação mos possam trazer de volta.


Muito pior é a dor dos amigos que perdi devido a um gesto, momento ou atitude irreflectida.


É uma dor que vai ficando, que nos mina, que nos desespera. É uma dor traiçoeira que nos ataca nos intervalos do dia e nas interrupções do sono. É uma dor de culpa e de arrependimento. É a demonstração da nossa falha, a nossa imperfeição enquanto seres humanos, o nosso pecado!


Afasta-nos do bem, afasta-nos de nós próprios!


E o pior, é que não há palavras que possam fazer sentir o nosso arrependimento, não há textos, por mais belos que sejam, que reflictam os nossos sentimentos, aquilo que sentíamos naquele momento e aquilo que sentimos depois, a todo o tempo.


E só nos nossos actos futuros, nos gestos e acções que praticamos, na mudança de rumo que damos às nossas vidas, no mostrar que queremos ser melhores do que éramos, que queremos ser melhores do que a maioria, podemos ter esperança de que um dia o rancor passe, o desafecto se atenue e nos possamos de novo reunir como os amigos que estávamos destinados a ser.


Contudo existe uma dor que nunca passará, a perda dos que já morreram. Eu sei que é uma dor que muda com o tempo. Criam-se memórias que nos confortam, que nos acarinham, que nos fazem felizes. Mas a dor, a dor da falta de presença física, do que ficou por dizer, estará sempre por cá!




O Diogo Sampaio de Guimarães era um dos meus melhores amigos. Faleceu devido a um trágico acidente. O indicador do nível de gasolina do seu automóvel estava avariado e ele viu-se sem combustível em plena madrugada na Av. 24 de Julho em Lisboa. Começou então a empurrar o seu carro até à bomba de gasolina que ficava a cerca de 100 metros.


Um imbecil bêbado, vindo de uma discoteca da zona e querendo mostrar às amigas que o acompanhavam que era melhor que o Fittipaldi, decidiu fazer-lhe uma razia para o assustar. Com o efeito do álcool e a falta de prática de condução acertou-lhe em cheio.


O Diogo foi evacuado para Santa Maria com lesões múltiplas onde haveria de morrer umas semanas depois devido a uma embolia, quando tudo parecia ir correr bem.


Eu era um dos seus melhores amigos e contudo não estive junto a ele quando mais precisava de companhia, de um apoio amigo. Agora vendo bem era ele que era um dos meus melhores amigos e não o contrário.


Eu morava então a 200 kms de distância, não havia auto-estradas, tal como agora tinha uma enorme dificuldade em colocar os deveres pessoais à frente dos profissionais e o acidente surgiu numa altura em que tive de trabalhar muitos fins-de-semana consecutivos e francamente, informavam-me de Lisboa que tudo estava a correr bem.


Tudo me serviu de desculpa na altura, tudo me serve para tentar justificar o porquê, mas o que é certo é que passados vinte anos ainda me culpabilizo por isso e caiem-me as lágrimas de arrependimento, como agora, no momento em que escrevo estas palavras.


Às vezes temos mesmo que escrever o que nos é mais íntimo, de mostrar quem somos, com as nossas coisas boas e os nossos defeitos. Quando me perguntam se me sinto confortável com a exposição pública das minhas memórias eu digo-lhes que o faço para fixar no tempo lugares, eventos e pessoas que se destacaram e que ficarão perdidos na memória colectiva se eu não o relembrar por escrito, para que fique!


Digo-lhes que o faço para ter tempo de dizer aos meus amigos o quanto eles significam e significaram para mim. Faço-o para homenagear amigos que se destacaram e para fazer uma elegia à amizade. Faço-o para que os meus filhos saibam como foi e como fui.


E tudo o que faço, na escrita e nas acções comunitárias faço-o também como acto de contrição. É tempo de crescer! É tempo de ser melhor do que era!


A minha crónica de hoje chama-se ‘’O Segundo Andar do Diogo’’ é dedicada à sua memória e àqueles dias felizes. A única nostalgia que sinto do passado não são os momentos que vivi, os lugares que frequentei, as aventuras em que participei. A única nostalgia que tenho do passado é os amigos que perdi. Uns recuperarei com o tempo, outros recuperarei com os actos mas há alguns que só poderei recuperar através da sua recordação.




O SEGUNDO ANDAR DO DIOGO

Falar do segundo andar de casa dos pais do Diogo Sampaio de Guimarães, na Praça da Fruta, ao tempo por cima da loja Monteiro, é falar antes de mais no próprio Diogo.

O Diogo foi um dos meus melhores amigos, presente em todas as peripécias e aventuras ocorridas nas Caldas e mesmo em muitas em que participei ou assisti em Lisboa, depois de partir para a universidade.

Ele esteve omnipresente nas matinés do Casino que mencionei numa das minhas primeiras crónicas (As Matinés no Casino) e em todos os outros episódios ai ocorridos. Era meu companheiro inseparável nas fitas do Pinheiro Chagas e do Salão Ibéria (O Piolho e as Reprises) e frequentador permanente do Sotão do Kiko (O Primeiro Sotão do Kiko) e mais tarde do Sotão dos Crespos (O Sotão), assistiu às cenas em volta do ‘’Disco Amarelo’’ e do ‘’Punk Belga’’ e foi protagonista de ‘’Sardinhadas com Azeite’’. Era o meu par e adversário preferido no ténis e não faltava às festas a que referi em ‘’Slows e outros Termos Náuticos’’. Picou o ponto em todas as referências a que fiz no meu Manifesto do Grupo sobre o que fazíamos na nossa juventude.

Estava certamente connosco nos eventos mencionados em ‘’Um Carnaval Perfumado’’ e ‘’Caçada na Mata Real’’.

Esteve sempre no meu pensamento em ‘’Cruzando os Anos em Poucos Dias’’ e só o facto de estudar em Lisboa o impediu de participar na nossa excursão de finalistas. E ainda tentou!

Como praticou rugby em Lisboa, jogava connosco ao fim de semana após os acontecimentos descritos em ‘’Rugby nas Amoreiras’’.

Era um dos participantes nas carrinhas de rolamentos de ‘’O Fim da Infância’’ e um dos membros de ‘’A Resistência’’.

Seguia muitas vezes connosco nas expedições diurnas ao Jardim-Cinema e nocturnas às discotecas dos arredores de Lisboa, como descrito em ‘’Um Vinho do Porto Com Mais de 30 Anos’’ e foi em sua casa que se alojou o grupo de amigos de Cascais que participaram comigo no retiro mencionado em ‘’Em Busca da Espiritualidade’’, quando uns tempos mais tarde decidiram nos vir visitar às Caldas.

Referi-me a si na crónica ‘’A Amizade está ao virar de uma Árvore’’ mencionando as nossas corridas de bicicleta no parque.

Era com ele também que corria para a ‘’Velha Esplanada’’ para comprar gelados.

Se colocasse no blog uma etiqueta com o seu nome seria certamente um dos títulos mais mencionado. Um amigo sempre presente em todas as ocasiões, por vezes nem percebíamos como ele lá tinha ido parar! O Diogo fazia-se convidado para a minha vida e hoje lamento amargamente que não tenha vindo para ficar!

Já passaram 20 anos desde que o Diogo morreu. De uma forma estúpida, trágica, malvada, ridícula, sem sentido, ilógica, absurda!

E eu estupidamente nem uma só foto tenho para o recordar perante vós. Como é possível que a nossa comunhão de vida de tantos anos não tenha sido registada por uma única vez?!

O Diogo contudo estará sempre na minha memória e não há dia que passe que não me veja obrigado a recordá-lo. Um local que visito, uma pessoa que reencontro, um facto que me é mencionado, uma das suas inúmeras broncas, manias, cenas estapafúrdias, palhaçadas, partidas, agora doces lembranças que me são recordadas!

O Diogo vivia em Lisboa, no Campo Grande, mesmo junto ao Colégio Moderno, mas tendo a sua família casa nas Caldas, não perdia um segundo para vir para cá. Apanhava uma boleia – às vezes punha-se em plena auto-estrada na Portela à boleia! – ou apanhava a camioneta da Rodoviária e antes do jantar de sexta-feira já por cá cirandava. Adorava as Caldas e só ia a Lisboa para frequentar as aulas. Todo o tempo que se libertava era passado nas Caldas.

Apesar de na maioria das vezes os seus pais não o poderem acompanhar, isso não atrapalhava o Diogo pois haveria sempre uma casa amiga para lhe dar as refeições que necessitava, em contrapartida a sua enorme casa estava sempre à disposição dos amigos.

O Diogo tinha características muito especiais, era uma criança grande, um miúdo que não queria crescer mantendo as virtudes - a que na altura chamaríamos por certo defeitos - da infância, a ingenuidade perante terceiros, a confiança total no próximo, a falta de cerimónia com os amigos.

Estas características valeram-lhe muitas partidas inofensivas que lhe pregávamos mas também muitas reprimendas pelos seus exageros e nem compreendia a razão do sermão. Tinha um enorme apetite e podia almoçar ou jantar tantas vezes quantas as refeições que lhe eram oferecidas. Detinha também o recorde de enfardamento de papo-secos das Teixeira. A imagem do Diogo a chegar à praia com a toalha numa mão e um saco de plástico com uma dúzia de papo-secos com manteiga e fiambre, é-me recorrente!

Não vou aqui dizer quantas sardinhas comeu uma vez no Casal dos Crespos, tendo sido mandado parar para que chegassem para todos. Foram dezenas e dezenas mas vocês nem acreditariam no número. Uma vez em casa da nossa tia por afinidade, Carlota Mendonça, uma linda moradia na Avenida, tentou comer todas as trouxas-de-ovos que tinham ficado do jantar por considerar que iriam ficar para se estragar uma vez que a Tia Carlota vivia sozinha, eram algumas dúzias!


Era também muito competitivo e esse era o seu principal handicap nos desportos. O Diogo tinha uma aptidão nata para qualquer desporto, poucos dias após começar a praticá-lo já o fazia de forma desembaraçada e bastante perfeita. Batia-me regularmente no Ténis, no Ping-Pong, no Snooker e no Bilhar, nos Matraquilhos e até nos Flippers. O truque, que usei em abundância, era picá-lo, começar a importuná-lo com bocas que o desvalorizavam. O Diogo nessa altura irritava-se, entrava em stress e acabava por perder sistematicamente os jogos perante um adversário de nível inferior como eu era.

Começámos a jogar ténis juntos aos seis anos, primeiro com o Toni Vieira Pereira como professor e depois pelos seus assistentes que estivessem disponíveis, o Néné Cardoso, o Gé-Gé Sottomayor, seu primo, o Rogério Matias e o Miguel Bento Monteiro. Mais tarde foram os seus dois irmãos, o Ai-Tó e o Miguel que nos aperfeiçoaram e corrigiram.

Também ficaram célebres as nossas corridas de bicicletas, primeiro no pátio do casino, depois no recinto das bicicletas no parque e por fim por toda a cidade e arredores. Inicialmente o Diogo tinha uma pequena bicicleta vermelha que por ter rodas pequenas exigia um enorme esforço contra a minha Vilar e a Motobecane do Kiko mas um belo dia, o seu pai Aires, apareceu com uma grande surpresa, três bicicletas clássicas, as típicas pasteleiras pretas, para cada um dos filhos rapazes e cada uma ostentava uma pequena chapa junto ao guiador com o nome de cada um deles. Foi uma festa! O Miguel chegou a ir de Caldas a Lisboa, à sua casa do Campo Grande, na sua bicicleta! Demorou seis horas, partiu às seis e chegou ao meio-dia, sempre por estradas nacionais! Ainda há pouco tempo nos encontrámos por acaso no Colombo e relembrámos esses tempos e esse episódio!



Como me faz falta um amigo como o Diogo! Nós éramos inseparáveis companheiros de desportos, salvo o caso em que uma vez me pediu emprestada uma prancha de windsurf, que por sua vez me tinha sido também emprestada e que eu repousara no areal junto à lagoa para descansar ou conversar com amigos, conseguindo me convencer que sabia velejar. Na realidade conseguiu levar com brio a prancha em linha recta quase até à outra margem, nos belgas. O pior foi que não sabia manobrar, caiu e depois de várias tentativas para se reerguer na prancha, decidiu voltar a nado e deixar a prancha à deriva! Lá tive eu que ir atravessar a lagoa a nado para recuperar a prancha!



Éramos tão inseparáveis em determinadas situações que após a sua morte esmoreceu por completo o meu gosto pelo ténis, desporto que deixei gradualmente de praticar até um acidente me impedir fisicamente de o voltar mesmo a fazer.

Jogávamos bilhar e snooker desde os nossos doze anos. Aprendemos com o meu avô materno no Marinto e prosseguimos por nossa conta nas mesas da cave do Central, no Camaroeiro, na Maratona, no Jardim-Cinema, no Foxtrot, no Pavilhão Chinês e em outros locais em Lisboa, no Caravela e no Leão na Foz do Arelho e mais tarde no Dreamers, no Solar da Paz e no Sitio da Várzea, onde jogámos as últimas partidas.

Jogávamos praticamente sempre que nos encontrávamos e após a sua morte nunca mais voltei a jogar uma partida que fosse até ao ano passado, em que de férias numa herdade no Alentejo o meu filho mais novo, Francisco, me pediu para lhe ensinar. Tal como acontecera à trinta e tal anos atrás com o meu avô João!


E entre um misto de alegria e uma enorme nostalgia pela falta que essas duas pessoas, o meu avô e o Diogo, me fazem na vida, ensinei-lhe a segurar o taco, os efeitos, a fazer pontaria.

Por respeito à memória do Diogo, por querer preservar esses momentos únicos que se destacaram por entre as várias recordações da nossa amizade, não voltara a jogar e então, naquele instante, senti que era uma causa tão bonita, a partilha de um momento único e inesquecível entre mim e o meu filho, que se justificava a quebra do meu pacto, o Diogo haveria de compreender e de gostar!

Mas o Diogo também tinha várias coisas em comum comigo e umas delas é que sistematicamente nos interessávamos pela mesma rapariga. O facto não era apenas coincidência, na realidade normalmente só nos chamavam a atenção caras novas, geralmente amigas de amigas que com elas vinham passar férias às Caldas. E sempre que eu ficava um pouco mais de tempo a conversar com uma delas lá vinha o Diogo me dizer que eu estava a tentar roubar-lhe a namorada! Mal podia eu dizer que ‘’Namorada? Só é se ela souber!’’ Aliás uma das minhas bocas preferidas quando o Diogo me dizia que a rapariga era sua namorada era perguntar-lhe: ‘’E ela já sabe?’’

Olhando agora para trás, salvo uma única excepção, a bela brasileira Solange, prima da Bibú e da Vani Castro, nunca namorei com alguma dessas turistas mas adorava a ideia de implicar com o Diogo e foi assim com a Luisinha Castelo Branco, prima do Manel e do Luis Castelo Branco, com a irmã da Manuela Benites que nos visitou numa célebre semana em que uma baleia deu à praia na Foz, com a Micá, amiga da Isabel Moreira, neta do Dr. Ernesto Moreira e entre outras que não guardei na memória, com outra amiga da Isabel Moreira, a Xana, actualmente mais conhecida pelo seu trabalho como actriz e pelo seu nome Alexandra Lencastre!

A Xana, veio por uma ou duas vezes passar às Caldas um período das férias de Verão com a sua amiga Isabel Moreira. Era muito simpática e entrosou-se rapidamente no nosso grupo de amigos. Passava os dias connosco na praia da Foz, onde aliás todos tínhamos barracas alugadas e as noites eram repartidas entre a casa da Isabel, sobre o túnel por trás da Igreja, na Zaira ou na Taiti e no segundo andar do Diogo!


Como o Diogo passava longas temporadas sozinho nas Caldas, os seus pais, por certo, preferiam que ele permanecesse em casa ainda que na companhia de uma multidão de amigos, do que a vaguear pela rua ou a passear em carros conduzidos por jovens com pouca experiência de condução. Assim disponibilizavam-nos o segundo andar de sua casa. Este estava inteiramente mobilado pois servia de área de hóspedes ou para quando tinham toda a família nas Caldas mas tinha uma entrada independente do resto da casa, tanto do primeiro andar, a residência oficial da família, como das águas furtadas onde residia a Aurora, sua empregada de sempre e o seu marido Miguel.

Ficava e fica situado num dos edifícios mais antigos das Caldas. Se procurarmos no Google imagens da Praça da Fruta, que já foi Praça Maria Pia e desde 1910 se chama Praça da República, verificamos a sua existência desde a criação do terreiro que deu lugar à praça.

Acedia-se por umas escadas em mármore muito íngremes que estavam à esquerda da entrada, e das montras, da loja Monteiro. Subia-se ao primeiro andar, à direita ficava a porta principal para o primeiro andar e à esquerda ficava a loja de retrosaria e o atelier da costureira D. Deolinda, à frente ficava a porta que dava para um hall interior que por sua vez dava acesso às portas do fundo da casa principal, que no passado serviria para atendimento dos fornecedores da cozinha, e às escadas interiores em madeira que conduziam aos andares superiores.


Durante uns tempos, apenas tínhamos acesso às divisões que davam para a Praça pois o andar era tão grande que se dividira em dois e a parte de trás, onde se situava a cozinha, estava arrendada a uns amigos. Quando estes partiram das Caldas, pudemos então utilizar todas as divisões da casa, embora na prática geralmente só nos mantivéssemos na grande sala com três janelas viradas para a rua.

Era aqui o centro da actividade, era como se fosse o nosso clube privado, daqueles que existem nos países anglófonos e que são em alguns casos exclusivamente para homens…ou para mulheres. Não era este o caso, pois toda a gente podia entrar se bem que na maioria das vezes as raparigas do grupo preferissem ir para outros lados do que se entediar em longas tardes de jogatanas de cartas.


Na realidade a maioria do tempo que passávamos no segundo andar do Diogo, e foram muitas as tardes e serões em que aí estivemos, era passado a jogar todo o tipo de jogos, desde o Monopólio, ao Petróleo, ao Risco e ao Cluedo, passando claro pelo xadrez e pelas damas. Também jogávamos às cartas, o King, o Crapô, à Sueca e os que sabiam jogavam à Canasta, Bridge não, pois só o João Moreira o sabia jogar! Mas o que nos retinha por mais tempo eram sem dúvida as sessões de pokeradas jogadas a feijões.



Parece que o poker é proibido de jogar fora dos casinos com o respectivo alvará, não sei se o jogo em si se jogar a dinheiro, contudo éramos todos menores de idade e passaram já trinta anos pelo que o crime, a haver crime, já deverá ter prescrito e verdade seja dita, não jogávamos senão a feijões, os de manteiga a fazerem de fichas de 1 e os feijões-frade a fazerem de fichas de 5!


Pelo sim pelo não, o melhor é não mencionar pelos nomes as dezenas de participantes que ao longo de alguns anos participaram nessas rodadas mas posso vos dizer que nos divertíamos muito mais pelas bocas dos participantes e assistentes e pelas cenas de bluff do que pelo jogo em si.

Este aliás era jogado com cartas de 7 ao Ás, eram pois retiradas as cartas do 2 ao 6 e conhecia duas variantes, aberto, ou seja eram distribuídas duas cartas aos jogadores estes tinham de as combinar nas conjugações conhecidas do poker com três das cinco cartas que eram gradualmente expostas sobre a mesa. Podiam ir apostando cada vez que se expunha uma carta na mesa e podia-se trocar uma ou outra carta até ser exposta a terceira carta sobre o tabuleiro. Na variante fechada eram distribuídas cinco cartas por cada um dos participantes que podia trocar até três cartas até à terceira rodada e depois efectuar as conjugações entre as cartas que detinha.

Mas nem só com jogos, leituras e assistência aos filmes de televisão, a preto e branco, se passavam os dias e os serões, geralmente até à meia-noite, hora de recolher.

Uma vez por outra aparecia alguma inovação e um dia o Fernando Horta e o Gentil apareceram com uma velha máquina de 8mm ou super 8 e com umas fitas para exibirem.

- Gamámos estas películas que estavam no sótão! São pornográficas! – exclamaram com ar de terem cometido uma enorme infracção e de estarem contentes por isso.

Olhámo-nos todos com ar de cúmplices. Ainda bem que não estavam raparigas presentes. Para muitos de nós, eu incluído, era a primeira vez que iríamos ver um filme pornográfico. Lembrem-se que na altura não existiam vídeos, nem canais por cabo. Apenas o Bar 25 na Rua do Coliseu e uma sala perto do Parque Mayer e ainda não os tínhamos descobertos! Na realidade tínhamos visto por engano do projectista umas apresentações no Salão Ibéria quando nos preparávamos para ver um filme de cowboys ou do Tarzan mas tinham sido apenas uns poucos minutos do Western Porno (ler a crónica ‘’O Piolho e as Reprises’’), do Mandigo e julgo que do Último Tango em Paris mas nada que nos elucidasse bem da questão!


Os rapazes da Amoreira lá puseram a bobine a rolar projectando o filme contra a parede nua.

Bem, nua era apenas a parede! As fitas em acetato estavam completamente degradadas pela humidade e fungos de anos de armazenamento e não se conseguia ver absolutamente nada. Apenas me recordo de uma cena com velas de aniversário e estrelinhas na parte final do filme. Podia ser apenas uma película caseira de uma festa de aniversário da família, vai-se lá saber!

Muito nos divertíamos no segundo andar do Diogo!

E quanto à Alexandra Lencastre perguntam vocês? Bom, a Xana era na realidade muito bonita e pretendida por todos os rapazes. De resto todos tentámos, sem sucesso, a nossa sorte. Viria a ter um serão de conversa a dois com ela enquanto os outros todos estavam entretidos com qualquer coisa e é só disso que me lembro. Disso e de que era muito simpática mas tinha de ter uma paciência de santa para nos aturar a todos! Ainda estive com ela por várias vezes no Restelo, na Rua Tristão Vaz, em casa da Isabel mas depois só a voltei a ver por uma vez, em meados de 80 numa paragem de autocarro no Saldanha.



As idas ao segundo andar do Diogo diminuíram com o aparecimento do Sotão dos Crespos e acabaram quando terminámos o liceu. Agora já não tínhamos tantas tardes livres nem os fins-de-semana nas Caldas podiam ser gastos enfiados em casa. Havia novas paragens por descobrir!

O Diogo continuou a ser meu companheiro quase diário dos serões de Lisboa e mantivemo-nos sempre por perto, durante toda a década de 80 até à minha ida para Coimbra em 1987. E foi aí que recebi, uns anos mais tarde, um dos mais tristes telefonemas da minha vida.



O Diogo permaneceu sempre dentro de cada um de nós, seus amigos. E talvez por isso, a sua mãe, a querida Tia Bia, sempre que me encontra, faz uma enorme festa, enchendo-me de beijos e abraços. Ela sabe que é um pouco do seu filho Diogo (e também por certo do Ai-Tó!) que ela reencontra em mim e eu, da mesma forma quando a encontro, abraço-a como estando a abraçar os seus filhos, meus amigos para a vida!


Ao Diogo

sábado, 27 de novembro de 2010

ÉRAMOS ENDIABRADOS - AS MEMÓRIAS DA MARIA JOÃO



Desde que comecei a ler as crónicas do Paulo pensei escrever qualquer coisa, mas a vida agitada, o excesso de trabalho e essencialmente, o não ter a certeza do que gostaria de partilhar que constituísse memória dos anos em causa, levaram-me sempre a arrepiar caminho.

Lembro-me de inúmeras peripécias desses tempos, que envolveram amigos e colegas de escola em situações mais ou menos caricatas. Do que me lembro essencialmente é que constituíamos uma geração engraçada e algo provocadora, numa época em que se estabelecia a transição entre as educações rígidas que a maioria de nós teve, e as bastante menos rígidas, já para não dizer, talvez um pouco facilitadoras demais, que a maioria de nós acabou por dar aos filhos.

No nosso tempo não se questionavam as opiniões e ordens dos mais velhos e cumpria-se um sem fim de regras, que agora nos parecem na sua maioria obsoletas. Até nos rimos quando recordamos que tivemos de implorar e batalhar pelo direito de ir a pé para a escola, ao passo que agora, os nosso filhos nem imaginam a possibilidade de não serem transportados para todo o lado por pais, avós ou quem quer que tenha alguma disponibilidade.


A minha irmã dizia-me há uns anos que por vezes se sentia um híbrido entre táxi e multibanco e parece-me que muitos de nós já tiveram essa sensação, nem que fosse por uma vez. Os nossos filhos convencem-se por vezes de que fomos um grupo ordeiro que jamais deixava de cumprir aquilo que estava estipulado e, embora em grande medida fosse isso que era de nós esperado, o facto é que nem sempre assim acontecia.


A grande diferença em relação ao que hoje se passa, era que nós fazíamos imensas coisas que não eram bem aquilo que entre aspas, deveríamos, mas sempre com alguma consciência dos limites que não se podiam mesmo ultrapassar.

Hoje em dia, penso que muitos miúdos se esquecem desses limites e isto é uma questão absolutamente transversal em termos sociais. Não é um problema de ricos e pobres, ou de mais ou menos cultos e educados, mas algo que se tem vindo a enraizar na sociedade de tal maneira, que mesmo os pais que têm noção de que as coisas não estão muito bem, acabam por ter dificuldade em remar contra uma maré que se avoluma e ganha força de dia para dia. É o conceito do “eu mereço”, que se difundiu num clip publicitário de um leite qualquer, mas se traduziu entretanto, na ideia de que tudo merecemos e a tudo temos direito, quando de facto nem tudo merecemos e muito menos, a tudo temos direito.

De qualquer forma, e voltando ao tema inicial, nós éramos endiabrados e muito nos divertimos com isso. Por isso e para que os participantes se lembrem e riam, e os não participantes também se possam rir, aqui ficam alguns registos de peripécias mais ou menos amalucadas de que me recordo.

A primeira que me ocorre é sem dúvida uma célebre noite no Inferno da Azenha em que estava com as amigas de sempre: a Lúcia, a Isabel, a Minela, a Sami e de certeza mais umas quantas. Estávamos no primeiro andar e todas ou quase todas já um bocadinho entornadas, quando de repente dou com a Minela a descer as escadas muito devagarinho, e a cada degrau que descia, dizia uma célebre frase que ficou para a História: “Minela, uma senhora nunca se embebeda.”, e lá descia mais um degrau…

Foto de Margarida Araújo

Outra peripécia engraçada mas bem mais antiga, remonta ao meu sétimo ou oitavo ano, quando decidi com a Anita não ir a uma aula qualquer, que entretanto já tinha começado. O problema foi que tínhamos os livros e cadernos dentro da sala e precisávamos de os tirar de lá, de forma que, achámos por bem pormo-nos de gatas e, quando o professor abriu a porta, puxar-lhe pelas pernas das calças e pedir-lhe que se afastasse, que íamos só lá dentro buscar uma coisa… e lá fomos nós de gatas ao outro lado da sala buscar os nossos pertences, e de novo até à porta, perante o olhar estupefacto de professor e colegas. Penso que o Prof. ainda hoje deve pensar porque carga de água não reagiu…

Também me lembro de passar uma aula de inglês inteira a mudar a fralda a um rato de pano com a Anita. Usámos um lenço de papel e conseguimos boicotar completamente o trabalho da desgraçada que teve e infelicidade de nos ter na turma. O problema era que ainda por cima éramos alunas de vinte a inglês e portanto as represálias não eram fáceis de exercer. Enfim, as coisas que os professores aguentavam… eram pelo menos mais divertidas que as que aguentam hoje, e bastante menos graves.

Também me lembro de um célebre sardão que o Mota largou no liceu… Deu um frufru medonho, houve senhoras em cima das mesas aos gritos e finalmente, quando o sardão foi apanhado e barbaramente encarcerado, pelo Padre Eduardo se não estou em erro, que há-de ter sido o único que lhe conseguiu mexer, os felizes proprietários do animal vieram-me pedir emprestada a pastora alemã para proceder ao resgate. Lá emprestei o bicho mas fiz questão de os avisar que não era grande defesa pessoal de tão amaricada a tínhamos feito. Não se importaram muito, alegando que o Padre não sabia dessas fraquezas da cadela e lá foram, exigir a devolução do sardão, sob pena de atiçarem o cão. Penso que ainda hoje poucos sabem que a pastora era um doce, habituada a brincar com crianças e incapaz de fazer mal a uma mosca. Ehehehe!


Ainda no Liceu, lembro-me bem de saltar pelas janelas dos laboratórios do rés-do-chão para ir laurear a pevide para o Parque; lembro-me também que laurear a pevide significava entre outras coisas, passeios de barco no lago com os pés descalços dentro de água, passar a tarde deitada na relva a roer uma palhinha, muito namoro e alguns passeios para a Foz e S. Martinho, esses mais tarde, já de carro e de mota.

Com a Anita lembro-me de no Carnaval deitarmos estalinhos da janela do terceiro andar da casa dela cá para baixo, e ficarmos deliciadas a ver as senhoras aos gritos e os collants a ficarem cheios de malhas com as faíscas pequeninas que aquilo deitava.

Por essa altura também tínhamos o hábito de ouvir música num volume de som tal que qualquer pessoa que passasse na rua três andares abaixo, poderia identificar claramente as músicas que ouvíamos. Quantas vezes a vizinhança se queixou e quantas vezes a mãe dela se exasperou connosco…

Voltando ao Liceu, lembram-se de quando um professor bem-intencionado se lembrou de dar umas aulas de educação sexual e da raia que isso deu? O infeliz quase foi expulso por estar a corromper as criancinhas e as criancinhas permaneceram tão desinformadas como estavam antes. Os puritanos da época regozijaram-se e à conta disso possivelmente, mais uma ou outra rapariga engravidou a destempo, mais um casalinho se formou prematuramente e mais uns avós tiveram de ajudar a criar netos de filhos adolescentes. Não é que a coisa não continue a acontecer, mas penso (espero..) que já não passaria pela cabeça de nenhum de nós achar que os meninos devem ser mantidos na ignorância.

Também me lembro de uma célebre professora de Português que decidiu dar gramática ditando o conteúdo de uma gramática. Já na altura eu tinha algum sentido prático e perguntei-lhe se aquilo que estava a ler era uma gramática, porque nesse caso se não se importasse, podia dar-me a referência da dita e eu trataria de a comprar e ler, em vez de estar a escrever definições no caderno. Escusado será dizer que ficou absolutamente furiosa e aí… ai que há gente que tem mesmo falta de sorte… não é que me disse que agarrasse nas pernas e fosse para a rua. Quem lá estava deve lembrar-se: saí mesmo agarrada aos joelhos… mais uma aula transformada num circo.

Eu era tramada mesmo, tenho de reconhecer, mas também tinha por lá umas acompanhantes jeitosas. Normalmente eram a Anita e a Isabel Martins, depois juntou-se-nos a Paula Nascimento da Benedita, enfim… meninas com ideias brilhantes. Quando não nos divertíamos a fazer a vida negra aos professores, entretínhamo-nos a escolher os colegas mais tímidos da turma e fazer tudo o que pudéssemos para os fazer corar. Miguel desculpa. Não tínhamos má intenção, mas tu ficavas mesmo giro vermelho que nem um pimentão…

Mas há mais algumas engraçadas: uma das melhores foi quando os três casalinhos da vida airada (leia-se eu com o Quintino, a Anita com o Mota e a Isabel com o Clérigo) tinham o bonito hábito de namorar nas escadinhas da sala de trabalhos oficinais, por traz do Liceu. A coisa estoirou quando um belo dia de manhã a porta das traseiras apareceu fechada a sete chaves. Nunca tivemos s certeza que fosse por nossa causa, mas tudo indicou que sim, a começar nos rumores que por lá andavam. Garantidamente que foi, ou por isso, ou porque o Mota se lembrou de entrar de mota no Liceu pela porta de cima, descer as escadas todas ainda de mota e, sair triunfalmente pela porta principal lá em baixo, com uma quantidade de funcionários a correr atrás dele aos gritos…


Falando em peripécias de mota com o Mota, também me recordo de um célebre passeio de mota em que eu ia com o Quintino, e a Paula Nascimento com o Mota, até que ali para as bandas do Campo, ela lhe meteu o bolso no blusão, deu um valente grito, saltou borda fora, aterrou de rabo no chão, e o Mota parou muito chateado porque ela lhe tinha entretanto feito desaparecer a cobra que ele tinha no bolso…

Voltando às peripécias no Inferno na Azenha, lembrei-me agora de repente de mais três. A primeira foi quando fizeram lá uma rusga, eu, a Lúcia e nem sei mais quem não tínhamos idade para lá estar e nos enfiámos na casa de banho; qual não foi o nosso desconcerto quando a Belão decidiu porque decidiu, que havia de ir à casa de banho naquele momento. Ora mesmo ao lado estava a polícia, o Jorge não conseguia arranjar maneira de lhe explicar porque era que lá estávamos e ela fez um escabeche à porta da casa de banho. Lá a deixámos entrar e ela lá se calou mas ainda hoje acho que a polícia só não nos encontrou porque não quis.

Entretanto nessa altura era também hábito, sairmos da Azenha e ir passear pelas Caldas. Íamos ao pão quente, às vezes directos para a praia, eu sei lá. Lembro-me de que uma vez, andávamos de carro a passear pelas Caldas lá para as sete da manhã e começámos a ver passar as senhoras já velhotas que se levantam cedo, para passear os cãezinhos. Daí a lembrarmo-nos de nos meter com elas porque eram umas vadias, que àquela hora andavam ainda na galderice, foi um passo. Na altura elas riam-se mas se fosse nos dias que vão correndo, o mais certo era as senhoras fugirem o mais que pudessem, com medo de serem assaltadas…

Finalmente, e para terminar este conjunto de peripécias mais ou menos engraçadas, mais ou menos rocambolescas, aqui fica uma que bastante me custou e quem estava presente certamente recordará: o dia em que e minha mãe me estabeleceu uma hora para estar em casa e como não a cumpri não foi de modas – meteu-se ao caminho até à Azenha e pregou-me um valente estalo em plena pista de dança. Essa doeu, mais na alma que na cara, mas doeu. Enfim, ela tinha alguma razão…

Não penso que o fizesse mas os tempos agora também são outros, o que me leva de novo à reflexão inicial, sobre as diferenças de educação entre nós e os nossos rebentos. Ainda não sei dizer qual é melhor, se a nossa se a deles. Penso que ambas pecaram por alguns excessos, sendo que naturalmente os excessos dos nossos pais foram por nós evitados, mas em contrapartida inventámos os nossos próprios excessos. Isto de educar meninos não tem receitas e não é fácil evitar alguns erros. Nós fomos talvez educados com demasiada severidade, até porque ficou patente nas linhas acima, que sempre tivemos meios de ultrapassar a maioria das regras. Os nossos filhos tiveram talvez a vida facilitada demais e muitos sofreram por falta de preparação para o mundo real, fora da saia da mãe e da mão protectora do pai. Se os nossos filhos conseguissem evitar os erros dos pais e dos avós seria fantástico, mas infelizmente a memória de cada geração é principalmente prisioneira dos factos vividos e esses confinam-se quase exclusivamente à geração anterior.



Post de Maria João Sacadura

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

NÃO É PRECISO CORAGEM


Para escrever não é preciso talento
É preciso coragem
Coragem para começar
Coragem para continuar.

Quando falamos de nós e não dos outros
É preciso coragem
Coragem para nos expor
Coragem para partilhar!

Para ser solidário não é preciso talento
É preciso coragem
Coragem para começar
Coragem para continuar

Quando damos algo de nós e não dos outros
É preciso coragem
Coragem para dispor
Coragem para partilhar!

Em ambos os casos
o que é preciso é começar
Depois, continuar

E finalmente veremos que a nossa coragem
Só é mesmo necessária
Se formos os únicos.
Se estivermos sós!



segunda-feira, 22 de novembro de 2010

EM SERVIÇO PÚBLICO

OBRIGADO SENHOR GULBENKIAN

Ainda hoje não consigo entender muito bem as razões porque Calouste Gulbenkian se decidiu a ficar em Portugal e dedicar toda a sua fortuna à instrução, formação e cultura do povo português.

Para quem conhece pouco a sua história direi que era um rico comerciante arménio nascido em Scutari, Turquia e que por disposição testamentária, antes de morrer em Lisboa, determinou que a maior parte de sua fortuna, acumulada na indústria e no comércio do petróleo, além de quadros e objetos de arte, fossem destinadas para uma fundação em Portugal, a Fundação Gulbenkian (1955), cujo objectivo seria promover a caridade, a educação, a arte e a ciência.

Cônsul-geral do Irão em Paris, no início da segunda guerra mundial refugiou-se em Portugal (1942), onde fixou residência.

Era conhecido como "senhor cinco por cento" devido à sua participação de 5% na Iraq Petroleum Company.

Em Abril de 1942, entrou em Portugal pela primeira vez, convidado pelo embaixador de Portugal em França.

Inicialmente, Lisboa seria apenas uma escala numa viagem a Nova Iorque, mas o empresário adoeceu e acabou por ficar mais tempo do que planeara, agradado com a paz que em Portugal se vivia durante o conflito que devastava o resto da Europa. Sentindo-se bem acolhido, estabeleceu residência permanente em Lisboa, no Hotel Aviz. Acabou por se instalar definitivamente em Portugal até à sua morte em 1955.


O testamento, datado de 18 de Junho de 1953, criou a fundação com o seu nome que ficou herdeira do remanescente da sua fortuna, e que tem fins caritativos, artísticos, educativos e científicos, elegendo Portugal para a sua fixação - agradecendo, postumamente, o acolhimento que teve num momento crítico da história da Europa e sabendo o respeito que em Portugal haveria pelo escrupuloso cumprir da sua vontade.

Já ouvi testemunhos de Mário Soares e de Jorge Sampaio que foram seus advogados e que referem que o facto de Gulbenkian ter permanecido no nosso país quando de inicio estaria apenas em trânsito para um exílio nos Estados Unidos, foi o facto das pessoas o cumprimentarem sempre com um sorriso e um bom dia no elevador do Hotel e nos cafés sem mesmo saber quem ele era. Dizia que isso era raro nos outros países que visitara.

Um bom dia com um sorriso fez com que Portugal beneficiasse por mais de 50 anos da sua generosidade, da sua solidariedade.

A minha crónica de hoje, ‘’EM SERVIÇO PÚBLICO’’ fala de mais um episódio pitoresco da minha adolescência, fala da minha paixão pelos livros, fala dos momentos que eu deixava a minha mente voar para os mundos dos piratas do Capitão Morgan e do Sandokan, para a selva de Tarzan, para as sete partidas do mundo de Júlio Verne e até para os fantásticos lanches dos Cinco! Fala da Biblioteca Gulbenkian instalada no parque D. Carlos I!

Devo muito à biblioteca Gulbenkian em termos de instrução, formação e lazer. Os seus livros ajudaram-me tanto a superar aqueles dias tristes de chuva de inverno que, por fim, já ansiava por eles.

Olhando agora para trás, vejo que também eu beneficiei da generosidade, da bondade de um refugiado estrangeiro, que apenas procurava abrigo de um mundo em guerra.

Ainda hoje existe quem procure abrigo de uma sociedade desequilibrada. Mas muitos não têm os meios de Calouste Gulbenkian.

E assim e agora, chegou também a minha vez de retribuir a generosidade de Calouste Gulbenkian, ajudando quem mais necessita.

Por isso no dia 11 de Dezembro estarei em Óbidos na Festa Anos 70 e 80 em Apoio à Instituição AJUDA DE BERÇO.






EM SERVIÇO PÚBLICO

Já anteriormente, em outras crónicas, abordei a importância que a Biblioteca Gulbenkian, instalada num dos pavilhões do parque, teve não só para mim mas para toda a população das Caldas e muito particularmente para os jovens da minha geração.

Adquirir livros não era um acto tão corriqueiro quanto o é hoje e o poder económico das familias nos anos 60 e 70 não era grande. Apesar de existirem várias livrarias nas Caldas como a Parnaso, a Pelicano, a Polana e a Tertúlia e a Tália também vendiam livros algumas papelarias como a Áurea, o Silva Santos, a Átila e ainda a Jornália. Contudo comprar livros ao ritmo da sua leitura era despesa completamente impensável quando o rendimento familiar era contado até aos tostões.

Daí que no seguimento da biblioteca instalada em 1962 num pavilhão do parque já com leitura domiciliária, foi inaugurada oficialmente em 1969 a biblioteca nº 156 da Fundação Gulbenkian. Esta biblioteca da Gulbenkian passava agora a ser fixa depois de anos em que serviu as Caldas com serviço itinerante.

E assim, a partir de meados dos anos 70 passei a frequentar assiduamente a biblioteca, tornando-me um utilizador frequente e constante e foi graças a esta biblioteca que pude aceder às obras que ilustraram a minha adolescência. Primeiro as obras de Julio Verne, Emilio Salgari, Enyd Blyton, Edgar Rice Burroughs, Leslie Charteris, Agatha Christie, Sir Arthur Conan Doyle, George Simenon, Paul Feval, Erle Stanley Gardner, Ellery Queen, Alexandre Dumas e depois os autores portugueses, Eça de Queirós, Júlio Dinis, Camilo Castelo Branco, Alexandre Herculano, Almeida Garret, Pinheiro Chagas, Ramalho Ortigão.


Entrava na biblioteca e depois de apresentar o meu cartão à bibliotecária sentada à direita de quem entra e apresentar os livros que levara para casa, disparava para as prateleiras situadas imediatamente à esquerda da porta de entrada.

Sabía que iria aí encontrar os livros indicados para a minha idade. A forma de classificação da biblioteca era bastante interessante com etiquetas coloridas na lombada de cada livro. Cada cor indicava o limite mínimo de idade a que podíamos aceder ao título. Os livros estavam dispostos por cores e eu sabia quais as prateleiras que continham os livros que podia levar para casa. Eram as à esquerda da porta. Só à medida que fui crescendo pude aceder às outras prateleiras, primeiro às do centro e depois às do fundo. Nunca cheguei às da direita e muito menos à sala do fundo onde estavam as preciosas encadernações resguardadas das mãos das crianças. No inicio dos anos oitenta quando parti para Lisboa já pouco utilizava a biblioteca que contudo se manteve em funcionamento até 1997.

O meu gosto pela leitura ficou mas ainda hoje me custa pegar em livros que não são meus, com receio de os estragar, com pena de não os manter!

A biblioteca cedeu o seu lugar à Biblioteca Municipal, erigida na Rua Vitorino Froes mas ainda hoje ao passar diante da porta da antiga biblioteca sinto uma grande nostalgia desses momentos passados no seu interior em busca de um novo título ou de quando quase corria para o parque logo após a hora de abertura para verificar se já fora entregue o livro que eu perseguia há semanas.

E ao olhar para aquela porta interrogo-me como teriam sido diferentes aquelas tardes de inverno chuvosas se não tivesse a companhia de todos aqueles livros cuja leitura a biblioteca me proporcionou.


E pergunto-me também como terão passado os outros jovens mais velhos do que eu se não fosse o serviço que a biblioteca e a Fundação Gulbenkian proporcionou à população caldense.

A história do serviço bibliotecário nas Caldas é interessante. Só nos finais dos anos 40 se instalou a primeira biblioteca nas Caldas quando uma comissão sob o nome de Grupo de Amigos da Biblioteca conseguiu reunir suficientes donativos e obras suficientes para constituir uma primeira biblioteca que ficou guardada no Sindicato dos Caixeiros.

Depois conseguiu-se instalar provisoriamente num dos arruamentos do Parque, por trás da estátua de Ramalho Ortigão, uma biblioteca de apoio ao jardim apenas com uma estante e uma mesa. Os livros tinham de ser lidos no local e devolvidos antes do encerramento.

Biblioteca instalada no Jardim Teófilo Braga (Jardim da Parada) em Campo de Ourique.
A biblioteca do Parque D.Carlos I deveria ser semelhante a esta que data da mesma altura.

Só em 1962 se inaugurou uma biblioteca com serviço domiciliário num dos pavilhões do parque, calculo que no mesmo local onde se situou a Biblioteca Gulbenkian que lhe sucedeu em 1969.

Esta biblioteca substituiu o serviço itinerante que a Gulbenkian já proporcionava à população local.

Os serviços bibliotecários itinerantes da Gulbenkian foram criados em 1953 e eram constituidos por unidades móveis, carrinhas Citroen Hy especialmente adaptadas para o efeito que transportavam no seu interior mais de 2000 livros.


Passaram a servir a população das Caldas e concelhos limítrofes a partir do inicio dos anos sessenta e as suas distintivas carrinhas Citroen ‘’Rinoceronte’’ tornaram-se famosas por todo o país.

Mal saberia a Gulbenkian que utilidade teria uma dessas carrinhas após a sua merecida reforma!


No inicio dos anos 80, um nosso amigo,o Luis Oom, apareceu um dia na Foz, onde a sua familia ainda hoje mantém uma casa de férias, com uma dessa carrinhas que tinha adquirido não me lembro em que circunstâncias.

A carrinha mantinha a iluminação original ou fora-lhe instalada um género de gambiarra e no seu interior foram montados uns divãs e uma mesa com banqueta. Parecia uma autocaravana rudimentar!

O Luis mostrou-a orgulhoso a todos os seus amigos e todos tivemos direito a dar uma volta. Finalmente, no sábado seguinte, o Luis decidiu ir nela até à Green Hill.

Estacionou-a triunfante perto da entrada, com a frente a dar para a parede à direita da entrada onde pediu ao Sr. Beja que lhe fosse deitando um olho.

Nessa mesma noite um seu amigo, conhecido por todos os que desde sempre frequentaram a noite da Foz, veio pedir-lhe um grande favor. Queria namorar à vontade com a sua namorada de há muito e gostaria de poder estar mais em privado com ela na carrinha Citroen.

No inicio o Luis recusou veemente mas depois ainda que relutante aquiesceu ao pedido do seu amigo mas encheu-o de recomendações e alertas para manter a decência.

Que sim, afiançou-lhe o amigo. Não haveria lugar a nenhuma falta de respeito, seria tal e qual o namoro no interior da discoteca mas ao abrigo dos olhares e das bocas dos amigos.

O Luis ainda se manteve muito preocupado. Tinha medo do que poderia acontecer e do que isso poderia ter como consequências para si próprio como proprietário da carrinha. E ficou ainda mais de pé atrás quando o amigo lhe garantiu que não aconteceria nada mais do que normalmente acontecia no interior de qualquer outra viatura estacionada no parque da Green Hill. O que ele foi dizer!!!


Finalmente com a garantia da jovem namorada ele lá entregou as chaves da Citroen e o casalinho lá foi todo lampeiro para a viatura.

Mas o Luis continuava inquieto e acho que só sossegou quando o Rodrigo, o ‘’Batata’’, subiu ao tejadilho da carrinha e espreitou pela claraboia que aí existia, certificando-lhe que tudo se mantinha dentro dos limites da decência.

A partir dessa vez foram muitas as noites que a carrinha esteve estacionada à porta da Green Hill e foram também muitos os pedidos que o Luís teve para ceder a viatura por alguns minutos. O Luís mostrou-se algumas vezes irredutível mas a verdade é que de vez em quando lá a voltava a emprestar. Contudo, os pedidos eram tantos que sugerimos que começasse a cobrar e a determinar o período de tempo de utilização para dar lugar a todos.
Foi o suficiente para o Luis desaparecer com a carrinha e até hoje não voltei a pôr-lhe a vista em cima!

Que será feito dela? Terá a Gulbenkian consciência do enorme serviço público que aquela Citroen continuou a prestar ao longos desses anos após a sua reforma?






AS BIBLIOTECAS ITINERANTES DA FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN (1958-2002)
Texto Complementar à crónica ''Em Serviço Público''


Para o início efectivo das bibliotecas móveis em Portugal é apontado a data de 1953, referente ao início dos serviços de uma biblioteca-circulante, implementada por Branquinho da Fonseca, no Museu-Biblioteca do Conde Castro Guimarães, em Cascais, onde na altura exercia funções de conservador-bibliotecário. Esse carro-biblioteca deslocava-se até “às associações, escolas e lugares centrais das povoações, proporcionando, através do empréstimo domiciliário, o acesso ao livro pela população.” [Neves, pág. 3]. Era de carácter gratuito e o acesso às estantes era livre.

Biblioteca móvel, do Museu-Biblioteca do Conde Castro Guimarães, de Cascais
(ver fonte no fim do post)

Em 1958 a Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) criou, por sugestão do mesmo Branquinho da Fonseca, um serviço similar ao de Cascais, mas que almejava abranger todo o território nacional, incluindo mesmo os arquipélagos. Surgiu assim o Serviço de Bibliotecas Itinerantes (SBI), que B. da Fonseca dirigiu até à sua morte (1974). Este tinha como objectivos “promover e desenvolver o gosto pela leitura e elevar o nível cultural dos cidadãos, assentando a sua prática no princípio do livre acesso às estantes, empréstimo domiciliário e gratuitidade do serviço.” [Neves, pág. 3] Afigurava-se como tal um serviço de leitura pública moderna.

O público a quem era mais dirigido o serviço era sobretudo aquele que era mais parco no acesso à educação e cultura, habitando nas regiões mas desfavorecidas. estendendo-se a todas as faixas etárias. Todavia será no público mais jovem que este serviço terá melhor acolhimento, apesar de se pretender contemplar de modo símile todas as idades. (ver [Melo, 2004a])

“As bibliotecas itinerantes ou carros-biblioteca levavam a bordo cerca de dois mil volumes arrumados nas estantes. Nas prateleiras de baixo, encontram-se os livros para crianças, nas prateleiras do meio a literatura de ficção, de viagens e biografias e, por fim, nas de cima os livros menos procurados, de filosofia, poesia, ciência e técnica. Circulavam por territórios que abrangiam mais do que um concelho, permitindo, após o cumprimento das formalidades de inscrição e requisição, o empréstimo dos livros por períodos de um mês, prorrogáveis, sendo até possível efectuar reservas.” [Neves, pág. 3 e 4]

A opção inicial por bibliotecas itinerantes foi motivada sobretudo pelo facto de grande parte das populações nunca antes terem tido contacto com este tipo de serviço e como tal revelava-se essencial ser a biblioteca a deslocar-se até elas, até em razão dos potenciais leitores possuírem poucos tempos livres, e de os meios de deslocação dos mesmos serem escassos. Com os veículos móveis era possível chegar ao Portugal mais profundo, dos pequenos lugarejos, de habitações mais dispersas (e uma grande parte destes povoados nem se localizava propriamente no interior do país). Indubitavelmente o cerne deste serviço era o leitor e as suas efectivas necessidades, o que era algo incomum nas bibliotecas mais tradicionais portuguesas. (ver [Melo, 2004b, pág. 282-83 e 330-331])

Este serviço era em muitos casos o único contacto com os livros que se possibilitava a muitas populações. Todavia, observa-se o cuidado de não atender apenas à leitura lúdica (embora seria esta a mais saliente) mas também à leitura informativa e formativa, abarcando o maior número de temáticas possíveis (e também incluindo nestes manuais de estudo, oficiais). A escolha do fundo documental obedecia a critérios bem definidos, por uma comissão, e era publicado num catálogo, actualizado regulamente (o primeiro, de 1960, possuía 1674 títulos diferentes). No acervo das obras disponíveis foram-se incluindo mesmo, embora lentamente e com certas reservas, algumas obras que não eram muito do agrado dos dirigentes políticos do Estado Novo. Ressalva-se, todavia que o empréstimo deste tipo de obras, era restrito a certas pessoas. (ver [Melo, 2004a])

Bibliotecas Itinerantes (Citröen) da Fundação Calouste Gulbenkian
(ver fonte no fim do post)

Inicialmente, em 1958, foram colocadas em circulação 15 bibliotecas itinerantes (sobretudo na região de Lisboa e litoral), mas o seu crescimento inicial foi deveras acentuado, sendo que em 1961 já circulava pelo país (estendendo-se ao interior) um total de 47 veículos de marca Citröen. (ver [Melo, 2004b, pág. 334]) “No que concerne ao pessoal que assegurava o funcionamento destas unidades móveis, era constituído por dois elementos: o auxiliar e o encarregado, responsável pela biblioteca, a quem competia orientar o leitor nas suas escolhas de leitura”. [Neves, pág. 4] O encarregado “não tinha de de ter nenhum curso específico, nem sequer de ser diplomado, apenas precisando de ser alfabetizado, evidenciar alguma cultura geral, gosto pelo livro e predisposição para o contacto com o público”. Entre eles incluíram-se “grande número de intelectuais reconhecidos” como Alexandre O’Neill ou Herberto Hélder [Melo, 2004b, pág. 285]

A FCG estabeleceu parcerias com as autarquias, em que estas cediam instalações para depósitos de livros (cada carrinha tinha o espólio no interior e mais o dobro de reserva num espaço exterior) e pontualmente contribuíam para o pagamento das despesas, ao passo que à FGC arcava com o grande ónus das expensas (fornecer o acervo de obras, o biblio-carro, pagar os honorário do pessoal, o combustível, despesas de manutenção e conservação, etc). (ver [Melo, 2004b, pág. 283-84]) A Gulbenkian teve assim a incumbência de se substituir em grande parte ao Estado a sua função de criar uma rede de bibliotecas, até pelo facto de o Estado não estar muito interessado na formação de cidadãos plenamente esclarecidos e informados. Por outro lado, e reportando somente ao valor material do livro, o seu corrente acesso era na época apenas factível a classes mais favorecidas.

Este serviço itinerante teve desde o seu começo uma elevada recepção, sendo que somente três anos volvidos, em 1961, o número de leitores inscritos era de cerca de 250 mil e foram requisitados cerca de 2,5 milhões de livros. Apenas para se observar a acentuada evolução, no ano seguinte o número de leitores inscritos era já de cerca de 350 mil e foram requisitados cerca de 3,5 milhões de livros (ver [Melo, 2004b, pág. 334])

Gradualmente, desde o 2º semestre de 1959, foram-se instalando algumas bibliotecas fixas, sobretudo em locais de maior centralidade e inseridas em organismos públicos, o que induziu, pelo menos a um acréscimo mais paulatino dos efectivos móveis. Em 1962 já existiam 36 bibliotecas fixas e 47 móveis, o que já evidenciava uma razoável cobertura do país. “Em 1963 introduziram-se as bibliotecas itinerantes e fixas nos Açores e na Madeira. Em 1967 contabilizavam-se 205 bibliotecas (61 móveis e e 144 fixas) (ver [Melo, 2004b, pág. 334-335]. Ainda assim, só em 1972, é que a própria FCG deu por «concluída» a sua rede de bibliotecas itinerantes e fixas, totalizando, respectivamente, 62 e 166 unidades” Nesse ano existiam cerca de 475 mil leitores inscritos e foram requisitados cerca de 6 milhões de livros. [Melo, 2004b, pág. 291 e 334]. As Bibliotecas móveis sempre serviram aos povoados mais pequenos e periféricos ao inverso das fixas.

Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian
(ver fonte no fim do post)

Desde o início da década de 70 o projecto SBI vê a sua sustentação fragilizada no seio da FCG, pois esta pretendia que as despesas (bastante elevadas e com um 'retorno' algo dúbio) fossem repartidas com o poder central e local. Em 20-2-1974 chegou mesmo a existir uma reunião onde se discutiu a extinção da SBI, contudo a eclosão do 25 de Abril, mudou o panorama global e o serviço manteve-se, sofrendo algumas reestruturações.

No período (1981-1996) em que Vergílio Ferreira foi director do SBI, foi enfatizado a animação da leitura e a difusão literária e cultural. Deste modo forami reforçadas as actividades de promoção da leitura e dos livros (exposições, debates, encontros com autores, leitura de contos e poesia, etc.) nas bibliotecas Gulbenkian. Em 1983 o SBI foi renomeado SBIF (Serviço de Bibliotecas Itinerantes e Fixas da Fundação Calouste Gulbenkian).

Vergílio Ferreira”foi um defensor da manutenção do projecto de bibliotecas FCG, pois entendia que a proposta lançada pelo IPLL não era uma alternativa completa, dado não cobrir então todo o pais (excluía as regiões autónomos) e por não ter um serviço de unidades itinerantes.” [Melo, 2004b, pág. 302].

A implementação gradual do Programa Nacional de Leitura Pública, a partir de 1987, que visava a construção de bibliotecas de feição mais moderna de acordo com os princípios de Manifesto da UNESCO contribui para o decréscimo progressivo do número de efectivos da SBIF que se vinha registando desde o início da década da década, sobretudo de móveis que rapidamente se extinguiram (ver[Melo, 2004b, pág. 294-298]. Por outro lado muitas das novas biblioteca da Rede Nacional de Leitura Pública começaram a integrar o serviço de biblioteca itinerante. Contudo em muitos dos casos a gradual ausência das bibliotecas itinerantes da Gulbenkian das povoações, não foi colmatada pelos novos serviços móveis, sobretudo nos povoados mais periféricos.

Em 1993 o SBIF passava a SBAL (Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura) e em 19 de Dezembro de 2002 era definitivamente extinto.

Biblioteca Itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian
(ver fonte no fim do post)

No total, segundo aponta Manuel Carmelo Rosa, director do Serviço de Educação e Bolsas da Fundação Gulbenkian, o serviço de bibliotecas itinerantes e fixas da FCG emprestou ao longo de quarenta e quatro (1958-2002) anos cerca de 97 milhões de livros e, chegou a quase 29 milhões de leitores, distribuídos por cerca de três mil novecentas povoações. Para cumprir com sucesso esse serviço adquiriu ao longo dos anos mais de cinco milhões de livros. (ver notícia LUSA/RTP abaixo)

Estes números são muito diferentes do que Daniel Melo apresenta. Relativamente ao número de empréstimos, e apenas entre 1958 e 1989, este regista 140 862 248 livros emprestados; e no mesmo período de tempo relativamente a livros adquiridos regista 7 849 749 livros. [Melo, 2004b, pág. 334-335]. Na mesma obra de Daniel Melo é registado que apenas entre 1958 e 1990 o número total de leitores foi 46 423 881. Desses, cerca de 36 551 663 (78,7%) foram crianças e adultos [Melo, 2004b, pág. 343]. Estes valores evidenciam a enorme importância que este serviço da Gulbenkian assumiu em Portugal e espelham de modo singular o elevado sucesso que granjeou no seio do povo português.

A propósito, Carmelo Rosa lembra que quando uma biblioteca móvel era substituída por uma fixa todo o acervo da móvel (quer do seu interior, quer em depósito) era oferecido ao município. Em Dezembro de 2002 com a extinção do programa praticamente todo o acervo bibliográfico e documental transitou para as autarquias. (ver notícia LUSA/RTP abaixo)

Saliente-se que a Fundação Gulbenkian continua a prestar um fundamental apoio às bibliotecas portugueses, sobretudo Públicas e Escolares, agora não através de unidades físicas (fixas ou móveis), mas de programas, serviços, diversas iniciativas, apoio financeiro e material, etc. que lhes concede; e de eventos e iniciativas (conferências concursos, formações, etc.) que produz nos e a partir dos seus espaços. E como lembra Carmelo Rosa "no seu website tem disponível mais de 30 mil fichas de leitura relativas ao que mais importante se publicou desde a década de 60".

Biblioteca Itinerante (renovada) da Fundação Calouste Gulbenkian
(ver fonte no fim do post)

Se desde finais da década de 80 o número de bibliotecas itinerantes da Gulbenkian diminuiu, essa redução foi sendo contrabalançada com o acréscimo sucessivo, de novas unidades referentes às bibliotecas não pertencentes à rede Gulbenkian. Estes bibliomóveis apresentam-se, regra geral, melhor apetrechados, incorporando já sistemas multimédia e informáticos. Por outro lado tem se vindo a diversificar o tipo de serviços móveis prestados, com a inclusão de bibliocaixas, bibliomalas, etc. A edificação de pólos e extensões das bibliotecas públicas não tem sido muito significativa, não servindo assim efectivo contraponto a este serviço. Na actualidade existem várias dezenas de bibliotecas públicas que prestam este serviço itinerante.

Na generalidade dos países da UE ou da OCDE, e basta olharmos para os nuestros hermanos, existe uma considerável profusão de redes de bibliotecas móveis. E na generalidade dos casos, não se tratam apenas de meros princípios verbais assinados num documento ou pontuais intercâmbios de serviços, produtos ou recursos humanos. São efectivas redes onde em muitos casos a mesma unidade móvel movimenta-se um raio de acção supra-concelhio, orientada por políticas de promoção da leitura e da literacia digital de âmbito regional.


Referências bibliográficas:

MELO, Daniel

2004a Leitura e leitores nas bibliotecas da Fundação Calouste Gulbenkian (1957-1987). [em linha] [consultado em 23/12/2006]

2004b A Leitura Pública no Portugal contemporâneo : 1926-1987. Lisboa : Imprensa de Ciências Sociais. ISBN 972-671-137-1

NEVES, Rui – As bibliotecas em movimento. As bibliotecas móveis em Portugal. [em linha] [consultado em 23/12/2006] Comunicação apresentada no “II Congreso de Bibliotecas Móviles”, que decorreu em Barcelona, de 21 a 22 de Outubro de 2005. (em formato word-pdf)

Gulbenkian emprestou 97 milhões de livros – notícia da Agência Lusa/RTP 18-7-2005

Fonte das imagens (referenciadas acima):

NEVES, Rui – As bibliotecas em movimento. As bibliotecas móveis em Portugal. [em linha] [consultado em 23/12/2006] Disponível em www:

Comunicação apresentada no “II Congreso de Bibliotecas Móviles”, que decorreu em Barcelona, de 21 a 22 de Outubro de 2005. (em formato ppt)


Publicada por Fernando Vilarinho no blog ''Bibliotecas de Portugal'' em 12/24/2006