terça-feira, 10 de agosto de 2010

CAÇADA NA MATA REAL



A população das Caldas vive hoje de costas para a Mata Rainha D. Leonor e no entanto nem sempre foi assim.

Quando eu era jovem passeava muito com os amigos pela mata e lembro-me de existirem vários pontos de confraternização da população mais idosa. Grupos de reformados juntavam-se assiduamente em bancos de jardim para jogarem à bisca e à sueca e o parque das merendas era todos os fins de semana ocupado por excursionistas ou pelos piqueniques da população local.

Claro que haveriam muito mais pessoas a ir assistir aos jogos do Caldas mas isso só influenciava a frequência um domingo em cada dois e no Verão, durante o defeso, nem havia jogos de futebol.

O momento mais alto do ano era a feira do 15 de Agosto que se organizava nesse tempo justamente na mata.

Recordo-me de entrar pelo portão junto ao Hospital (por trás da monumental obra Jardim da Água de Ferreira da Silva que muitos teimam em não conhecer) ou pelo que fica junto ao Palácio Real, por trás da igreja de Nossa Senhora do Pópulo. E as veredas que se iniciam nesses portões logo eram ladeadas pelas barracas dos feirantes que se estendiam até à alameda principal junto ao campo de futebol.

A mata nesses dias estava polvilhada de pessoas com um movimento só igualado pela Feira da Fruta que se realizaria mais tarde no Parque D. Carlos I.

Eu avançava pela mão dos meus pais ou avós e mais tarde na companhia de amigos, olhando deslumbrado a diversidade de brinquedos quase artesanais que eram colocados à venda: os jogos do Loto e do antepassado do Sabichão, os aviões, barcos, locomotivas, carros e motas de todos os géneros em latão, uns de empurrar e outros de corda, os brinquedos de madeira articulados, alguns munidos de rodinhas e com um varão para empurrar, os móveis e objectos de cozinhas e os piões grandes em latão com múltiplas cores e que se punham a rodopiar premindo um eixo/veio central, as espingardas que disparavam dardos com ventosas, as pistolas com fitinhas de fulminantes que assustavam os idosos e sobretudo as bolas de serraduras cobertas de prata colorida e presas por um elástico, os ioiô daqueles tempos!

Ao cimo da mata desembocava-se no campo de futebol, em terra branca, agora transformado em parque de diversões e aqui poderíamo-nos perder por horas.

Não faltavam as barraquinhas de tiro ao alvo para ganhar uma ginjinha (no nosso caso um pirolito!), os jogos da bola escondida entre 3 caixas, as barracas de algodão doce e de farturas e as tascas improvisadas para comermos os frangos ou sardinhas assadas.

O enorme chapiteau do circo (Mariano, Cardinalli, Americano) era a estrela principal, apresentando o célebre palhaço Quinito, o mais famoso de Portugal (que eu viria a conhecer mais tarde através do seu irmão Zeca)!

Mas em seu redor erguiam-se outras estruturas de nos pôr a boca aberta de admiração. O labirinto de espelhos que nos desfiguravam o reflexo, as barracas com tiro ao alvo com bolas de ténis para acertarmos numas latas empilhadas, os diversos carrosséis, os carrinhos de choque, o peso que se elevava com a força da martelada que lhe dávamos e que se atingisse um determinado nível fazia tocar uma campainha e ganhávamos um prémio, a tenda que apresentava a mulher barbuda e a mulher-sereia (com um soutien de armação reforçada!), a tenda com o Gigante de Moçambique ou de Manjacaze com 2,45 metros de altura (eles falavam em 3,5 metros!) e com o anão Toninho de Arcozelo e ainda o espantoso Poço da Morte cujos motociclistas desafiavam a gravidade e a vida cruzando-se vezes sem conta a alta velocidade nas paredes de um poço de madeira!

Íamos para a mata logo que a feira começava e só saíamos quando era hora de jantar. Depois voltávamos de novo para a ‘’sessão’’ da noite!

Procurámos sempre desfrutar do melhor que a mata nos dava e isso significava, ao longo da adolescência, a prática de actividades desportivas e outras… também desportivas!

Mas a mata era também sinónimo de aventura (pois, para a prática desportiva também era uma aventura!) e serviu para pregar inúmeras partidas aos amigos que desconheciam os hábitos e a fauna caldense.

Um desses amigos foi um inolvidável holandês amigo e repetidamente hóspede de férias da família Calisto, o nosso inesquecível Martin, companheiro de aventuras e fotógrafo amador das corridas de touros protagonizadas por alguns dos membros da gangue! O bom do Martin queria à viva força entrosar-se com o nosso grupo de amigos (o que aliás conseguiu rapidamente graças à sua simpatia e fair-play) e revelava-se sempre pronto para participar nas nossas brincadeiras, mesmo que ele fosse a vítima escolhida.

Ora os primos Pedro Calisto e Miguel Calisto Pereira Monteiro, anfitriões do Martin, decidiram um dia informá-lo que existia uma espécie rara e endógena de animais a habitar a mata real, uma colónia de animais tão escassa quanto esquiva, sendo muito difícil caça-los, nomeadamente à noite, quando saiam das suas tocas para caçar.

De uma forma vaga foram dizendo que se tratava de um mamífero roedor arraçado de pássaro.

E que se chamavam gambuzinos!

Claro que o Martin não descansou enquanto não fossemos com ele à mata ver e mesmo caçar os tão famosos gambuzinos.

Então numa noite, reunimo-nos na grande casa dos avós Calisto na Rua dos Bombeiros, um enorme grupo composto por todos os Calistos e ramificações (Pedro, Miguel, provavelmente já o Gonçalo, o Asdrubal e talvez o Jorge, os Titos ou seja o Chico, o Tony e o João), eu, o Diogo Sampaio Guimarães, o João Moreira, o Luis Castelo Branco, talvez o Luis Castro, o Ricardo Ramos, talvez o Kiko Pessoa e Costa, o Pedro Cardoso, o João Gancho, o Helder Vasconcelos ‘’o Peliculas’’, talvez o Tomix, e ainda alguns outros (olhando agora à distância vejo que entre forcados dos grupos das Caldas, Montemor e Vila Franca tinhamos o suficiente para pegar de caras um gambuzino de meia tonelada!), e munidos de alguns sacos de pano, daqueles para ir ao pão, lá fomos nós em direcção à mata.

Para aumentar a aventura decidimos entrar pelo portão mais afastado, ou seja, o que tem acesso pelo Largo João de Deus. O portão estava fechado pelo guarda mas saltámos o muro numa zona mais baixa e lá entrámos em direcção ao parque das merendas.

Ensinámos uma cantilena qualquer ao Martin, tipo ‘’Gambuzino p’ra’qui, Gambuzino p’ra lá! Um, dois, três, quatro, Gambuzinos ao saco!’’ e lá fomos ouvindo-o a cantar e a andar completamente agachado entre o mato e os arbustos à procura dos célebres gambuzinos!

E nós todos atrás a conter o riso e a levar muito a sério o nosso papel de batedores…de retaguarda!

A partida correu muito melhor do que esperávamos pois encontrámos pirilampos e alguém decidiu dizer ao Martin que eram os olhos dos gambuzinos (a patranha da mistura de mamífero roedor com pássaro tinha agora dado jeito!).


E pronto, podem imaginar o pobre do Martin a correr atrás dos pirilampos, cabelos ao vento e saco bem aberto segurado pelas duas mãos e cantando desalmadamente:

- ‘’Gambuzino p’ra’qui, Gambuzino p’ra lá! Um, dois, três, quatro, Gambuzinos ao saco!’’

Não sei quantos trambolhões, arranhões e contusões lhe valeram a correria perante as nossas gargalhadas mas no final o Martin chegou ao pé de nós, completamente desolado a pedir desculpa por não ter apanhado nenhum gambuzino!

Confortámo-lo o melhor que pudemos e pondo-lhe um braço à volta dos ombros, o Pedro Calisto sossegou-o com aquele vozeirão de forcado.

- Deixa lá! Amanhã também é dia!

E não é que no dia seguinte conseguimos convencê-lo a repetir a dose?!!!!




Feliz Aniversário Pedro. Que possamos disfrutar da nossa amizade por muitos e bons anos.
Como sempre, tens 23 dias para me chamar Puto!


Nota: Por uma feliz coincidência o Martin está neste momento de férias nas Caldas com os seus filhos. Talvez queiras de novo participar numa gloriosa caçadas para recordar os velhos tempos?!


Nos próximos dias publicarei três textos complementares a esta crónica:

- A Caça aos Gambuzinos
- Ainda se lembram do Gigante de Manjacaze?
- O Poço da Morte


Queen - Friends Will Be Friends


PARTIDAS TRADICIONAIS


GAMBUZINOS

Gambuzinos são bichos inexistentes que vivem no campo, em estado mais ou menos selvagem e têm várias utilizações, como pretexto para organizar-se uma caçada; fazer um petisco de gambuzino; pele muito bonita para casacos, etc..

Para organizar uma caçada aos gambuzinos, necessitamos de:

- dois ou mais conspiradores

- uma ou mais vítimas crédulas;

- uma saca de serrapilheira ou equivalente para cada vítima segurar e   latas e paus para cada um dos conspiradores fazerem barulho.

De início, os conspiradores escolhem as vítimas. Depois combinam com as vítimas a data e a hora da caçada. Convem ser no próprio dia e devem alertar que a caça aos gambuzinos é proibida, para que as vítimas não digam nada a alguém que as possam disuadir.

De seguida, levam-se as vítimas para o campo. Aí procuram-se arvores com tocas (buracos no tronco), buracos no solo buracos nas rochas.

A caçada consiste em:

A vítima encosta a boca da saca à toca da árvore e fica a segurar até que o gambuzino salte para dentro da saca e...

Os conspiradores afastam-se para fazerem um cerco maior e fazem barulho batendo com os paus nas latas, para assustarem os gambuzinos e obrigá-los a sairem da toca da árvore para dentro da saca.

A partida consiste nos conspiradores virem embora e deixarem a vítima no local, segurando a saca.



ELECTRICIDADE EM PÓ

É obvio que não existe.

Pede-se à vítima para ir à drogaria mais próxima e trazer uma pequena quantidade de electricidade em pó. É preferível não enviar dinheiro, pois a vítima pode vingar-se ficando com ele.

Se o fulano da drogaria também for conspirador, dirá que acabou a electricidade em pó, mas que na outra drogaria, ou na farmácia, também vendem. Conheço um caso em que a vítima foi a 6 estabelecimentos.


OSSOS DE MINHOCA

Igual à electricidade em pó.



SUOR DE POLÍCIA

Igual à electricidade em pó.



SOMBRA DE OLIVEIRA

Embora esta partida possa parecer igual às anteriores, a verdade é que sombra de oliveira existe na realidade. É um óxido metálico utilizado pelos pintores. Esta partida serve para confundir a vítima.


PEDRA-DAS-SEDAS

Igual à electricidade em pó. Contudo, se o fulano da drogaria também for conspirador, arranjará algumas pedras para a vítima carregar.



FITA DE IMPRESSORA

Quando a fita já está usada, diz-se à vitima que a fita já não imprime porque está suja. Pede-se-lhe então, o favor de a lavar. A água, o sabão e a cera da tinta fazem uma mistura que suja tudo e é difícil de limpar.



CAMPAÍNHAS - I

Basta tocar a campainha da porta da vítima e fugir. Rir é opcional.



CAMPAÍNHAS - II

Repetir a anterior as vezes necessárias. Cuidado com campaínhas III.



CAMPAÍNHAS - III

Se é a nossa campainha que estão a tocar, enche-se um balde com água e sobe-se à varanda. Quando a vítima se aproximar para tocar a campainha, despeja-se a água por cima dela. Não é necessário que seja água. Pode ser qualquer outra coisa. Que saudades do tempo em que havia penicos debaixo da cama...



CAMPAÍNHAS - IV

Espera-se que alguém venha a entrar no prédio e procede-se como na anterior. Se a vítima protestar, põe-se uma cara muito sincera e arrependida e explica-se que durante todos os dias, uns malandros fartaram-se de tocar a campainha.



BATENTES DE PORTA

As portas mais antigas, têm um batente em ferro, para bater à porta. Ata-se uma linha forte à parte móvel do batente. De longe, basta puxar a linha para bater à porta.


Paul Simon & Art Garfunkel - Scarborough Fair












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