segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

O BEIJO DA ARTISTA



Um dia vêm ter comigo a correr.

- Anda ver depressa, andam umas miúdas nuas pela Rua das Montras e está tudo no maior reboliço.

Entreolhei o amigo surpreendido mas nem por momentos pensei que me estaria a pregar uma partida. Corri atrás dele até à Rua das Montras.

Afinal a multidão já tinha dispersado e apenas ficaram pequenos grupos de foliões comentando o tema.

Lamentei não ter estado presente mas mal sabia eu que teria outras ocasiões nessa semana para assistir ao momento mais controverso que a pacata cidade assistira desde a remoção da estátua do Marechal Carmona do Burlão.

Voltemos alguns dias atrás no tempo.

Entre 1974 e 1977 realizaram-se os “Encontros Internacionais de Arte” (Valadares, Viana do Castelo, Póvoa de Varzim e Caldas da Rainha), promovidos por Egídio Álvaro e Jaime Isidoro da Galeria Alvarez do Porto.

Nesse ano de 1977 decorreram nas Caldas numa iniciativa conjunta da Casa da Cultura, Museu José Malhoa e outras entidades, os IV Encontros Internacionais da Arte.

Pretendeu-se efectuar uma exposição dinâmica que interagisse com a população mostrando o multifacetismo da arte com exposições, instalações e palestras sobre formas artísticas tão diversas como a escultura, a pintura, a literatura, a arquitectura e até o cinema.


‘’ A exposição é para Egídio Álvaro o espaço concreto no qual o pensamento e a sua prática artística se encontram onde, em diálogo permanente, artistas e crítico-comissário definem o seu pensamento visual, político e social.

Através das exposições que comissariou e sobre as quais escreveu profusamente – EXPO-AICA-SNBA (1972/1974); III Encontros Internacionais de Arte (1976) e Identidade Cultural, Massificação e Originalidade (1977) – afirmou uma postura crítica e curatorial, que consideramos indissociáveis e que se situam na charneira das mudanças que caracterizam a crise do modelo museal dos anos 70 e a afirmação de uma nova fórmula expositiva que privilegia a inserção da obra de arte em contexto vivo – numa aproximação ao espaço da vida social.’’

Ana Luisa Barão: Egidio Álvaro: O Critico como Comissário


Na realidade Egídio Álvaro concebeu as exposições como espaços em que o momento de produção e de exibição fossem simultâneos, daí a extraordinária multiplicidade de instalações, de happenings, de perfomances e de produções que se efectuaram naqueles dias em que ocorrera o Encontro. Um espírito de vanguarda e absoluto experimentalismo dominou todo o evento.

Nele participaram, entre outros, Artur Bual, Túlia Saldanha, Alvess (Manuel Nogueira Alves), Abilio José Santos, o Grupo Puzzle (João Dixo), Carlos Carreiro, Albuquerque Mendes, Dario Alves, Armando Azevedo, Graça Morais, Jaime Silva, Pedro Rocha, Pinto Coelho, Gerardo Burmester) e o Grupo Acre (Alfredo Queiroz Ribeiro, Clara Meneres, Lima Carvalho), ambos dedicados a pinturas de rua, o Grupo de Animação ANIMA com Bernardo Silvestre Pestana, Seme Lutfi, Ernesto Melo Castro, sua mulher Alberta e a filha Eugénia Melo e Castro, Orlan Sans, Louis Orrocha, o grupo espanhol ‘’A-Por-No-Gráfico’’.

Existem poucas notícias da época e muito menos recordações daqueles dias mas estes foram, apesar de tudo inesquecíveis para os jovens de 14 ou 15 anos como eu.

Os eventos até começaram de forma pacata com palestras e exposições no Museu José Malhoa e na Casa da Cultura mas as diferentes intervenções urbanas dos vários artistas presentes começou a dar literalmente um colorido especial às ruas da cidade.

Em diversos pontos das Caldas começaram a aparecer sinais da sua presença com grafittis, pinturas no asfalto e nas calçadas, murais, intervenções escultóricas, cenas teatrais e declamações poéticas em plenas vias e praças públicas.

Uma intervenção mais ousada inflamou os ânimos na Praça de Peixe e originou um desacato sério, não me lembro se com um grupo de comerciantes ciganos se com peixeiras e pescadores.

A pouco e pouco as intervenções começaram a ser mais provocativas e vanguardistas reagindo a população ora com humor ora em choque.

E é neste espírito que a artista francesa Orlan Sans e um grupo de assistentes femininas efectuou um conjunto de intervenções que para sempre iriam ficar na memória dos jovens (e menos jovens!) caldenses!

No dia seguinte estava com uns amigos na Zaira quando alguém entrou e nos veio chamar para vermos o que se passava na Rua das Montras.


Desta vez Orlan Sans fazia-se acompanhar de mais algumas jovens e como vestais desfilando em Roma, trajavam finas túnicas e véus, com algumas parecenças no estilo que não nos tecidos, com os hábitos de freiras.

Os mantos só vagamente cobriam os corpos despidos. Ainda assim, menos mal que na véspera!

O cómico da situação é que Orlan seguia refastelada no único transporte apropriado que encontrara para o evento. À falta de uma liteira de vestal, as jovens empurravam um velho carrinho de jardineiro, certamente levado do parque (o Tobias, jardineiro do parque, não deve ter achado graça à ideia!)

E assim, no meio das instalações de outros artistas, ziguezagueando entre as pinturas efémeras da calçada que outros colegas artistas produziam no momento, a artista francesa e o seu séquito avançavam, de peito feito – literalmente! – e grande aprumo, rumo à Rua dos Herois da Grande Guerra donde retornavam de novo até à outra extremidade da Rua das Montras, junto á Praça.

O desfile das jovens desnudadas ainda durou algumas piscinas de ida e volta perante o deleite da população masculina, o riso de alguns e as palavras de desdém e de ira de outros.

Finalmente, um elemento da Policia foi chamado a intervir mas este, após tentar dialogar sem sucesso com as artistas que se refugiavam no seu francês para fingir ignorar o que lhes era dito, acabou a chamar reforços.

Veio enfim um corpo policial de quatro elementos para põr fim à situação e foi de forma humorada que se assistiu às tentativas dos policias para tapar a nudez visivel das performers enquanto as conduziam de volta ao Parque de onde partia toda a acção.

Orlan Sans não se deu por satisfeita e e como grande parte do público acompanhou o grupo sob escolta, decidiu criar mais um happening, decidindo medir a área do ‘’Céu de Vidro’’ do edificio da Casa da Cultura com o seu próprio corpo. Sendo um recinto privado, a policia limitou-se a acompanhar os eventos a partir da porta, acompanhando a população que se divertia com a excentricidade da artista francesa que se deitava no chão de azulejos do lindo salão, enquanto uma das suas acompanhantes fazia a marcação com um giz.

Já não me lembro do resultado da medição, nem sei tão pouco se ficou para a história, mas certamente deu um determinado número de corpos de Orlan Sans de cumprimento por tantos de largura!


Fotos extraídas do Blog: 100SentidosComSentidos de Margarida Araújo
No sábado seguinte, Orlan voltou à carga! Desta vez tirou uma foto sua nua, de corpo inteiro e à escala natural e colou-a numa placa de contraplacado que mandou recortar.

Prevenida, já não era ela pessoalmente mas a sua imagem que desfilava agora pela Rua das Montras. Era persistente, a francesa!

A imagem foi erguida sobre o já célebre carrinho de mão e a policia desistiu de a persuadir.

Finalmente, a artista para estimular o público que começava a acomodar-se ao espectáculo e a reagir de forma mais desinteressada, mandou cortar a placa em várias partes, desmembrando o seu corpo fotografado.

Fotos extraídas do Blog: 100SentidosComSentidos de Margarida Araújo
As placas mostravam agora partes do seu corpo, braços, pernas, torso, que a artista decidiu leiloar em praça pública. Mais uma vez a expressão tinha uma forma literal já que o leilão foi feito na Praça da Fruta, em plena hora de mercado, ao sábado de manhã.

No domingo iria terminar o Encontro e Orlan faz a apresentação da instalação que conhecera estreia mundial na FIAC em Paris e que tinha agora preparado para este evento. Tudo o resto tinha servido para se dar a conhecer e desencadear reacções da parte do público, neste caso da população local.

“O beijo da artista” (Le baiser de l'artiste) causa polémica com a simulação do seu corpo como uma máquina automática de vender beijos. O utilizador colocava a moeda do respectivo valor numa pequena ranhura que a artista usava ao peito e esta recompensava-o com um beijo.


A instalação foi colocada no salão magno do Museu José Malhoa junto às grandes estátuas de Francisco Franco e Leopoldo de Almeida.

Os mais afoitos foram os velhos artistas boémios caldenses que tomaram, com notável sentido de humor, a iniciativa de serem os primeiros a receber os calorosos beijos da artista, a troco de uma moeda que depositavam num dispositivo da instalação. Isto perante uma plateia de populares ora divertidos ora escandalizados pela audácia e despudor de alguns dos nomes mais sonantes da vida artística caldense, bem entrados na vida e que, assumiam eles, com idade suficiente para ter mais siso!

Que grandes figuras! Que gente boa!


E o que me ficou na memória, foi o ambiente de quase festa e de bom humor com que terminou o Encontro. Ia o ano de 1977!





ORLAN DO OUTRO LADO DO ESPELHO
Texto Complementar à crónica ''O Beijo da Artista''


por: Eunice Gonçalves Duarte


ORLAN/ORLON

“J'ai donné mon corps à l'art”

Orlan


Não é uma afirmação mas o titulo de uma performance. Uma das muitas performances coreografadas, preparadas e realizadas por Orlan durante a Reincarnação de St. Orlan.

Em 1977, “O beijo da artista” (Le baiser de l'artiste) causa polémica com a simulação do seu corpo como uma máquina automática de vender beijos; o utilizador colocava a moeda do respectivo valor numa pequena ranhura que a artista usava ao peito e esta recompensava-o com um beijo. Este foi o ponto de partida para uma mulher que 6 anos antes se havia baptizado com o nome artístico de St. Orlan, ao “mascarar”-se com materiais como o vinil e a pele. Encena a vida dos santos em forma de performance integrando fotos, colagens, vídeos. Esta incarnação centrava-se na denúncia da hipocrisia da sociedade tradicional na forma como tratava a imagem feminina, colocando-a sempre entre a santa e a prostituta.

Influenciada pela obra de Duchamp e pelas correntes revolucionárias do Maio de 68, Orlan trabalha performances blasfémicas onde o seu corpo encarna e molda diferentes personagens, numa espécie de retratos vivos das acções que se passam. Uma gravidez extra-uterina fez com que fosse operada de emergência; através de uma anestesia local, pôde ser espectadora da sua operação como se a parte do corpo a ser operada não lhe pertencesse. Montou uma única câmara na sala de operações e assim que a primeira cassete terminou foi enviada de imediato para o Centro de Arte Contemporânea de Lion para ser exibida, numa performance quase em simultâneo. Mas foi só pelo seu 43.º aniversário, em 1990, que fez a primeira de nove operações da performance Reincarnação de St. Orlan. Através de acessórios e cenários vários tinha representado as suas esculturas e performances; agora Orlan passa a esculpir na sua própria carne, agindo impiedosamente sobre ela através de operações plásticas. Não seriam operações normalizadas feitas à porta fechada, mas sim sob a forma de performance mediática e ensaiada onde se mistura música, literatura e dança. A sala é decorada de acordo com uma cenografia específica e os figurinos são feitos por costureiros famosos, numa mistura do barroco, grotesco e kitsch. Cuidadosamente estudada e estruturada, começa pela desconstrução da imagem mitológica feminina, construída através da história da arte. Assim concebeu um retrato feito com o nariz da escultura de Diana, a boca de Europa de Boucher, a testa da Mona Lisa de Leonardo da Vinci, o queixo da Vénus de Botticelli e os olhos da Psyché de Gerome. A escolha de cada uma destas personagens tem uma razão específica: não foram escolhidas pela sua beleza artística ou pelo facto de serem mundialmente conhecidas mas pelo seu peso histórico e mitológico que as tornou parte da história e cultura ocidental. A escolha de Diana deve-se a esta ser a deusa da caça, agressiva e aventureira, que não se submetia aos homens, Psyché devido à sua necessidade de amor e de beleza espiritual, um oposto a Diana, Europa por esta ter olhado para outro continente e se ter aventurado num futuro desconhecido, Vénus pela sua caracterização mitológica como deusa do amor, da fertilidade e da criatividade, e Mona Lisa pelo mistério e pela lenda de que este é um auto-retrato do pintor.


Cada performance é registada em fotos e vídeos e a partir de certa altura começa a ter transmissões em directo, via satélite, para todo o mundo. Os espectadores podem telefonar para a artista colocando as mais diversas perguntas, sempre com um estilo diferente. Ao misturar estas personagens mitológicas faz surgir uma personagem híbrida que não procura a beleza ou a juventude; ao escolhê-las Orlan não deseja entrar para o livro de recordes em operações plásticas nem sequer ser parecida com as personagens, como é acusada pelos vários meios da comunicação da especialidade. Elas são uma inspiração pelo seu contexto histórico e pelo seu valor representativo.

Os textos constituem uma parte importante nestas performances, já que estas são feitas com base em textos filosóficos, psicoanaliticos e literários de autores como Antonin Artaud, Michel Serres, Eugenie Lemoine-Luccioni, Alphonse Allais, Elisabeth Betuel Fiebig, Raphael Cuir, Julia Kristeva e ainda textos hindus em sânscrito. Tudo é feito pela artista de maneira consciente já que as anestesias são dadas a nível local e não geral, o que lhe permite gerir o que se passa à sua volta assim como os materiais que registaram a sua performance para futuras exibições. Orlan, tal como qualquer artista, toma uma certa posição em relação a uma ideologia artística que quer ver materializada.

A sua posição artística não é contra as intervenções plásticas mas contra os padrões de beleza e o domínio destas ideologias que se entranham cada vez mais na carne dos homens e das mulheres. Orlan explica que com a idade se tende a estranhar a aparência no espelho; algumas pessoas não aguentam essa ideia e as operações plásticas são sem dúvida a melhor solução, numa sociedade que valoriza e idolatra a juventude. As operações plásticas não são naturais ao corpo humano, assim como outros medicamentos e cosméticos utilizados, que acabam por ser assimilados como “extensão” e se tornam necessários à sobrevivência.

“Dei o meu corpo à arte” e é na arte que ele ficará, já que pretende doá-lo a um museu após a sua morte, mumificado ou moldado com resina, sendo a peça mais importante de uma instalação vídeo interactiva. De momento Orlan dedica todos os seus esforços para que seja reconhecida judicialmente a sua nova identidade relacionando-a com a sua nova imagem.



O CORPO PARA ORLAN

“This is my body, This is my software.”

Orlan

Bragança de Miranda classifica o corpo como um feixe de ligações prejudiciais à nossa vontade. Já para Deleuze e Guattari o corpo é uma unidade uniforme. Orlan afirma que o seu corpo é o seu software, esta é a sua frase de apresentação, como se se tratasse de um cartão de visitas. O corpo é uma espécie de bolsa onde está a matéria que permite a Orlan trabalhar sobre ele tornando-o uma metamorfose. “Este corpo é obsoleto”, diz, “não está preparado para a velocidade exigida hoje em dia e cada vez mais exigida”.

Quando da sua pesquisa e preparação para a Reincarnação de St. Orlan, consultou um psicanalista que ao saber o que iria fazer lhe disse que iria cometer um suicídio, proibindo-a de prosseguir o trabalho, afirmando que este tipo de mudanças no corpo através de operações plásticas deve apenas ser utilizado em situações de ausência do orgânico ou então em caso de acidente e não para práticas de metamorfose artística. Ao reformular estas noções e ao explorar as novas possibilidades de actividade artística faz dessas performances um “ready-made”; assim como Duchamp readaptou objectos quotidianos e John Cage fez do silêncio música, Orlan faz de operações plásticas a sua obra.

Para alguns críticos o seu corpo é a sua obra de arte final mas para a artista não é o resultado final que importa, e sim esse ritual de passagem que faz em cada performance. Da discussão de valores que são abalados e que surgem em torno das questões por ela colocadas, acrescenta ainda que na sua vida a relação com os outros não depende do seu corpo mas do contexto e das histórias produzidas pelo seu corpo.

Esta foi a primeira e única artista a utilizar as operações plásticas como performance, designando o seu trabalho como «Carnal Art», um auto-retrato feito com o uso de tecnologias avançadas que lhe dão a possibilidade de ter o corpo “aberto” sem sofrimento e ver o seu interior. As suas ideias e conceitos artísticos encarnaram na carne o valor do corpo na sociedade ocidental e o seu futuro nas gerações vindouras face ao avanço tecnológico e às manipulações genéticas. O confronto entre esta fragilidade do corpo e o avanço tecnológico é a base de todo este trabalho, isto é, saber como eles se podem relacionar ou se o tecnológico acabará por prevalecer sobre o biológico.

Na continuação deste trabalho, pensa em operar o seu nariz, aumentando-o tanto quanto possível anatomicamente. O seu trabalho não desrespeita o seu corpo, pelo contrário denúncia a sua fragilidade e a decadência que mais tarde ou mais cedo todos acabamos por notar.



RELAÇÃO COM O ESPECTADOR

Além das imagens mitológicas que Orlan adaptou para a sua reincarnação, as suas performances têm uma aproximação muito forte ao espectador.

As tragédias gregas, pelo seu carácter de rito e de representação da vida de personagens mitológicas, emocionavam plateias, fazendo-as reagir como se fosse real o que se passava em cena. A barreira que separava o real da ficção era quase inexistente, com excepção do espaço físico onde decorria a acção, os anfiteatros gregos.

As performances cirúrgicas de Orlan destroem por completo essa barreira entre real e ficção, já que o espaço utilizado é uma sala cirúrgica, que apesar de decorada e cenografada de acordo com a performance, não perde o seu carácter “operatório” associado a médicos, a bisturis e ao cheiro de desinfectante, e a acção realmente acontece, não é representação ou apresentação de algo, é o escortanhar do corpo e a substituição de certos elementos por outros. No meio de sangue e de entranhas começa o desenrolar da acção, ou o inicio da reincarnação.

Durante muito tempo Orlan assumiu uma série de representações teatrais usando figurinos e máscaras para a ilusão do real. A partir da década de 90, a ilusão deixou de o ser e o seu corpo passou a conter em si essas máscaras, em acções onde o sujeito passa a ser o objecto e o público e o privado se confundem com a expansão dos meios de comunicação.

Muitos artistas fazem estas experiências de se colocarem perante o perigo com a intenção de perturbar quem vê, absorvendo os limites entre a realidade e ficção e entre vida e morte, colocando o espectador não só no meio do naufrágio mas tentando afogá-lo também, para tal utilizando meios que pareçam o mais reais possíveis e de difícil representação. Ao passarem a transmitir as suas performances em directo, tornou-se possível uma interactividade e uma aproximação maior do espectador.

Para esta artista a arte é só por si uma questão de vida ou de morte e assim em cada operação corre um risco, já que insiste em estar consciente durante todo o processo. As anestesias são dadas ao nível da espinha e com isso corre cada vez mais o risco de ficar paralítica, além das deformações que pode sofrer ou até mesmo a morte.


Orlan acha que corre tanto perigo como um piloto de corridas, o risco não está nas suas acções cirúrgicas mas na aceitação das mesmas pela sociedade, que está sempre pronta para inventar inquisições e regras de ética. Teme mais as violências verbais da crítica do que as do corpo, o grande risco é o não poder voltar atrás, mesmo que queira. Assim que termina a sua performance espera-se pelo sarar das cicatrizes e que prepare a produção da próxima intervenção.

Estas acções trazem uma atenção maior por parte dos media do que o normal nas práticas artísticas. Estes acontecimentos mediáticos obrigam o público a reagir, a concordar, a discordar, a tentar ver se o artista realmente consegue cortar o seu próprio corpo, a procurar razões e identificar semelhanças com outros casos; em suma não é só um público que vê. Será um retorno à magia que a arte sempre proporcionou ao espectador?

Para Konstantin Stanislavski a melhor técnica de representação, a mais real possível, seria o recorrer à memória, à recordação de acções passadas, para que as emoções desse momento possam ser utilizadas para se incorporar uma personagem. Mas Orlan tatua não só a sua memória mas também o seu próprio corpo com personagens específicas, componentes da e conectadas com a sua prática artística.

A arte absorve a vida já que deixa de haver o distanciamento ilusório e a morte não é entendida como um fim mas como mais uma metamorfose. Não significará antes a possibilidade de o espectador experimentar arte?


ORLAN NO CONTEXTO DA ARTE CONTEMPORÂNEA

Chama a sua arte “Carnal Art” e não “Body Art”, como já referi num capítulo anterior; no entanto não nega influências. A referência de Marcel Duchamp está presente no seu trabalho: através da sua obra começou a perceber que o negócio do belo não é nada mais do que um negócio. Andy Warhol é outra das referências por deixar que na sua arte apareçam os meios com que as realiza, e principalmente Joseph Beuys, no seu papel de shaman cujas feridas representam os males da sociedade como um vazio ainda não perceptível pelos outros. A sua arte absorve também influências de Herman Nitsch e do grupo vienense “Aktionismus”, da década de 60, que espantava os espectadores com imagens reais de rituais de sacrifícios do próprio corpo. Dos artistas desta corrente artística destaca-se Rudolf Schwarzkogler que se fotografou a cortar o seu pénis em fatias, o que lembra algumas das fotos de Orlan durante o seu processo de cura e transição para as novas operações. A grande distinção entre este grupo e a artista em questão residia num fingimento teatral não real, com o espaço como elemento determinante. O espaço de Orlan é uma sala de operações enquanto os espaços desse grupo eram os mais variados; além disso a maior parte dos documentos fotográficos era, quase sempre, encenada.

De momento, identifica o seu trabalho com o de artistas como Sterlac e Hans Haacke. Sterlac apresenta um tipo de arte que lhe agrada por ter declarado o corpo obsoleto e ter substituído uma série de membros para ultrapassar os limites da sua simples carne, propondo a si mesmo objectivos muito ambiciosos sem se afastar do complemento crítico que faz à sociedade. De Hans Haacke interessa mencionar o seu trabalho de pesquisa sobre a lavagem do dinheiro.

Ao contrário do que se poderia pensar, sente-se distante em relação à maioria das obras realizadas com as novas tecnologias. Acha que são só demonstrações técnicas ou da qualidade da definição de imagens; poucas obras têm um verdadeiro conteúdo pessoal e artístico. Apesar de utilizar as novas tecnologias para expansão do corpo, deixa claro que isso nada tem de semelhante às instalações electrónicas e tecnológicas exploradas em todos os festivais ciber.

Além deste nomes, destacam-se ainda Jeffrey Shaw, Daniel Buren, Rebecca Horn, Marina Abramovic, Annie Sprinkle, Guillaume Bijl, Andreas Serrano, Cindy Sherman, Damien Hirsh, Fabrice Hybert, Walter de Maria e Mattthew Barney.


Podemos ainda associá-la também ao movimento da arte informe em que a estrutura deixa de existir e a obra de arte aparece sempre como inacabada, como um contínuo, sem um limite material. Mesmo dentro de um frasquinho, ou algo parecido, deixa sempre adivinhar uma história passada e uma possível história futura, onde não existe um fim específico. Não há necessidade de haver obra, basta apenas haver conceito. Sob este aspecto, Orlan contribui para o movimento da desmaterialização da obra de arte e para o aparecimento de novos paradigmas de intervenção artística ao colocar a arte num local incómodo, não num “site specific” mas em todo lado onde ela estiver, podendo ser observada como um elemento politico, biólogico e de intervenção na sociedade circundante.



LUCROS E DINHEIRO

Já que se trata de uma arte efémera em que a escultura está inserida no corpo da artista, de que maneira se dá a comercialização dos seus trabalhos?

Orlan tem consciência da dificuldade de comercialização das obras de qualquer artista, principalmente quando se trata de um tipo de trabalho como o seu. Sabe também da pouca comercialização dos trabalhos do grupo de Viena, como Gina Pane, que só se tornou interessante quando se soube da iminência da sua morte, e mesmo assim poucas obras dela hoje são compradas. Os coleccionadores não estão interessados em adquirir parte de líquidos do corpo, excepto se estes estiverem associados a uma prática artística muito forte e a um grande jogo de divulgação, como Orlan sabe fazer. Sabe que, como disse Andy Warhol, “arte é negócio” e cada vez mais as peças artísticas são assimiladas a mercadorias comerciais e os artistas não negam um bom preço pelas suas obras, muito menos os herdeiros destes se incomodam com este facto e o mesmo se passa com as galerias.

Como já foi referido, cada performance cirúrgica é registada em vídeo e fotografada, além disso durante essas intervenções a artista faz uma série desenhos com o seu sangue e gordura que depois são comercializados. As entrevistas que dá são pagas a peso de ouro, assim como as conferências e as aparições nos diferentes festivais. Apresenta em exposições, como produto das suas performances, amostras dos líquidos (carne e sangue). Para além do seu trabalho como artista, é docente da Escola de Belas Artes de Dijon.

Um dos seus trabalhos, de momento, consiste na angariação de uma agência de publicidade que a rebaptize com um nome artístico e um logótipo, identificando-se com uma política comercial em que ela é o próprio produto.




CONCLUSÃO

Corpo cortado, aberto, mapeado, examinado, violentado, exposto, comercializado, idolatrado… Que corpo é este que nos aparece hoje? Obsoleto? Talvez! Coberto de véus que esconde o que de mais abominável existe? É possivel! Dificilmente olhamos para carne viva, descoberta, mesmo que seja só e apenas um pequeno corte. Como nos relacionarmos com um corpo sem órgãos? Ou como nos relacionarmos com um corpo com órgãos cada vez mais fragilizados?

Qual noiva do monstro de Frankenstein, Orlan deixa para trás as suas encenações teatrais e decide trabalhar directamente na carne, gravar no seu corpo máscaras. Ao contrário da história de Mary Shelley, Orlan é simultaneamente criadora e ser criado.

A história e a cultura mapeou o nosso corpo com regras e leis que moldam o nosso comportamento; a partir do século XI começa a haver uma repugnância com o corpo e as práticas a ele associadas: iniciaram-se as proibições, as punições e as perseguições. Era uma altura em que se morria muito e tal não assustava a população que parecia estar sempre preparada para a chegada da morte. Estavam certos de encontrar outra vida, fosse ela num inferno ou num paraiso, mas ela continuava, não acabava com o material. No século XX a esperança de vida aumentou e ninguém quer morrer, já não se acredita nessa vida como continuum e teme-se pela velhice e pelas consequências que se seguem, por isso é mais do que aceitável que haja este culto do corpo saudável, da juventude e do belo.

Na arte, tudo muda, há muito que se descobriu que o verdadeiro impacto da arte na vida quotidiana não era o mostrar o belo mas o desvendar do feio e das técnicas.

Ao realizar este trabalho, Orlan colocou em cena esse confronto com a morte e com o feio, mostrando olhos inchados, cicatrizes na cara, uma mostruosidade que impressiona: olha-se por momentos mas não mais do que isso; ver mais perturba-nos. A artista sabe disso e faz disso a sua motivação artística. A vida fica aniquilada por este zelo de arte, de ideologias artísticas, políticas e estéticas como um cristo que defende a sua identidade de “filho de Deus” e por ela dá a vida. O importante deste trabalho é que dele se fale.



6 comentários:

Anónimo disse...

Eu também me lembro. tinha 17 anos na altura. No ano seguinte entrava para a Escola de Belas artes. Foi decisiva essa experiência que para muitos foi de perplexidade, mas para mim abriram-se possibilidades que nos termos artísticos nunca poderia imaginar. A terapia de choque é sempre a melhor, digam lá o que disserem.

Anónimo disse...

HENRIQUE SILVA TAMBÉM PARTICIPOU NESSES ENCONTROS COM URSULA ZANGGER. PINTOU UM MURALNO PARQUE QUE FOI DEPOIS DESTRUÍDO!!!

Anónimo disse...

As fotografias não são da autoria de Margarida Araújo, mas sim ORLAN.

David-Alexandre Guéniot disse...

Estou a procura de fotografias desses encontros para uma publicação sobre a historia da performance em Portugal. Sabem de pessoas que têm?

Anónimo disse...

Muito intéressante, obrigado! Tirei muitas fotos na altura, tou a colocar-as na minha pagina facebook, Dominique Labaume

Ana Bigotte Vieira disse...

David, fala com a Sílvia Pinto Coelho. O pai dela era do grupo PUZZLE e quando eles fizeram o documentário para o Porto 2001 acho que reuniram material

bjs

a