domingo, 13 de junho de 2010

A AMIZADE ESTÁ AO VIRAR DE UMA ÁRVORE



Olhei para o relógio. Eram 15h30 de hoje. Ainda tinha uma hora e meia antes do inicio do Grande Prémio do Canadá.
Decidi-me por ir ao parque e tirar finalmente algumas fotos dos recantos que me marcaram a adolescência, antes que fosse tarde de mais, como o Salão ibéria ou o lago junto aos courts de ténis.
Estacionei junto à Fábrica da Bordallo Pinheiro. Constatei que felizmente a loja tinha gente de visita. Vamos ver se aguenta! A alma das Caldas está morrer e há muitos que não estão a dar por isso.
Entrei pelo bosque em direcção à Parada, onde está o muro que trepávamos na infância? As bancadas onde beijei a C. com os meus 15 anos? O ring onde reaprendi a andar de patins depois de ver a Paula, então namorada do Toni, a fazer incriveis piruetas?
(a primeira vez que andei de patins, recordei, era uma criança de 6 anos e fora no velho ring do Jardim Zoológico com um africano já idoso, vestido de fraque e cartola, professor a tempo inteiro no Zoológico dos anos 60 e inicio de 70).
Recordei o Sr. Zé, pai do Zé Moura, do seu falar duro mas um coração grande como o mundo.
Recordei os jogos de andebol das nossas aulas de educação fisica e os duelos de hoquei em patins e basquetebol que presenciei, sempre em apoio a equipas das Caldas.



Hoje a parada está a ser arrelvada e tive que a contornar. Passei pelo lindo palmeiral onde recriava as aventuras de Tarzan quando tinha os meus 8 anos.


Passei pelo local onde haviam umas árvores de tilia, de onde eu colhia as folhas e ia vender às amigas da minha avó para fazerem chá. Tilia tormetosa é o seu nome cientifico e eu recordei os tormentos que passei para conseguir conquistar a E. e foi ali, junto a uma delas que eu a beijei pela única vez. Tinha 16 anos. Da árvore apenas resta um toco a sair da terra.



Passei pelas casas dos guardas e virei à direita pelas escadas de troncos e terra. A meio patamar olhei melancólico para a esquerda recordando uma lancharada que fizemos no último dia de aulas do meu primeiro ano de liceu, com a Paula e a São no comando. A Paula reencontrei-a vender fruta no Pó, está na mesma! A São, nunca mais a vi!


Subi ao terreiro de cima e vi-me de novo à sombra da árvore a ler ‘’Viagem ao Mundo da Droga’’, teria uns 14 anos!


Virei de novo à esquerda olhando com tristeza as as portas e janelas emparedadas dos velhos pavilhões. Passei as estufas do parque e o pavilhão onde se praticava judo com o Prof. Coutinho ou com o Eusébio e dei por mim na velha esquina relembrando os intervalos que descrevi em ‘’Cruzando os anos em poucos dias’’. A minha adolescência estava ali, naquelas paredes vigorosas de um edificio decadente. Um dos ex.libris da cidade jaz ao abandono à espera que a Câmara, a direcção do hospital e algum ministério se entendam! Não é preciso definir o seu destino para recomeçar as obras de conservação.


Primeiro faz-se, depois logo se vê! Se foi assim com o pavilhão de Portugal na Expo porque não será com um dos dois maiores monumentos arquitectónicos das Caldas?
Continuei a tirar as fotos pretendidas e desci pelo mesmo caminho, em direcção à fonte onde numa brincadeira estúpida parti um dente ao Kiko quando tinhamos uns 8 anos.


Vi o lago onde o João Gancho caiu à água ainda nos tempos do casino e onde mergulhámos após queimarmos os cadernos na comemoração do fim do Liceu. Velhos ritos que cairam no esquecimento!
Vi o espaço onde ficava o Salão Ibéria que descrevi em ‘’O Piolho e as Reprises’’, os pátios interiores do Liceu que nunca mereceram o nosso aproveitamento e a porta da biblioteca Gulbenkian onde eu lia os livros do Emilio Salgari e de Edgar Rice Burroughs.


Virei à direita, entre o Casino/Casa da Cultura e o velho Liceu. Vi-me no meu primeiro dia de liceu onde recebi a praxe, recordei o Ricardinho Calisto a apresentar-me a Maria Martinho da Benedita, a miúda mais bonita do liceu, finalista e quatro anos mais velha, e eu todo babado por conhecê-la! Revia-a uma vez em Coimbra, no inicio dos noventa, mas não me reconheceu 17 anos depois!


Sai pelo portão em frente ao hospital termal e olhei para trás para ver uma vez mais a imagem que tinha todos os dias ao chegar ao liceu.


No largo revi de novo o Frederico Costa na recordação que descrevi em ‘’Cruzando os anos em poucos dias’’. Fotografei a renovada fachada do antigo casino e entrei pelo novo Céu de Vidro, agora mais comprido que originalmente. Recordei as ‘’Matinés no Casino’’ e as brincadeiras de criança. No jardim que era privativo mantêm-se os plátanos onde gravei tantas iniciais e corações e os espaços das minhas brincadeiras de infância.


Desci então a velha Aldeia dos Macacos em direcção ao coreto e à esplanada. O velho coreto de que pintei as grades numa crónica que está por contar (Cat e Ana Paula, adiram ao fb para eu a poder contar!), vi as avionetas vermelhas que descrevi em ‘’A Velha Esplanada’’ e revi com actualização as mães a conversarem e as crianças a brincarem. Já lá não estão os stands de gelados nem a velha jukebox mas a magia que emana da esplanada mantém-se inigualável.


Ia em direcção ao parque infantil mas decidi virar à esquerda em direcção ao parque das bicicletas recordando as corridas com o Diogo, o Luis Castelo Branco e o Kiko e a cena de ‘’Pliés e Babygrows’’.


Ao virar a esquina da vereda surge-me o Oliveira com um amigo. Faz-me um amplo sorriso e olha para o seu amigo com um olhar cúmplice.
-Nem sabes a coincidência! – Diz-me numa gargalhada pondo-me a mão no ombro.
Fico à espera da noticia. Somos amigos há mais de trinta anos, partilhando a amizade comum de um amigo que recordamos com saudade, o Luis Morgado (que ia a sair da Zaira em ‘’Cruzando os anos...’’) mas raramente nos vemos, talvez uma vez por ano, cruzando-nos fortuitamente na rua e com um cumprimento sincero mas sempre apressado. Por essas e por outras escrevo o que escrevo e que muitos não entendem. Qundo temos tempo para dizer aos amigos o quanto os estimamos? E quando iremos ainda a tempo?
O Oliveira tira não sei de onde um pequeno embrulho de papel almaço que me entrega!
Tem colado no exterior uma fotografia do meu pai a receber qualquer coisa, uma foto velha e amarelada. Não entendo o que é? Serão postais?
- É uma placa de zincografia!
O embrulho contém uma velha placa de zincografia, de madeira e zinco, e a foto colada no pacote mostra a impressão que se produz por aquela placa.
(Definição: ZINCOGRAFIA é a técnica através da qual se imprimem gravuras a partir de chapas como o zinco ou alumínio. O desenho é realizado com uma tinta especial sobre a superfície em alto-relevo, por meio da reacção ácida das partes não protegidas, que vai transformá-lo numa matriz, pronta para ser impressa.)
Estas placas eram utilizadas para efectuar impressões de fotografias nos velhos jornais entre os caracteres das letras que compunham, um a um, o corpo do texto em tipografia.
A fotografia mostra afinal o meu pai a receber um prémio. Tem uma legenda e um apontamento escrito á mão, tem data de 15 de Janeiro de 1981. Há 29 anos!
Sei de que se trata apesar de ter sido no meu primeiro ano de Lisboa. Foi em Madrid e o meu pai está a receber uma distinção para a empresa que tanto amava. Não um prémio individual mas para a empresa. Para cada um dos seus funcionários, para cada um dos individuos que constituíam a essência daquela empresa. E como o meu pai sempre me disse, uma empresa é como uma igreja. Não é um edificio, não são quatro paredes por mais belas que sejam. Uma empresa são as pessoas, é com elas que contamos, é com elas que podemos recomeçar! Por isso acredito que o meu pai não via aquelas distinções como um reconhecimento do seu mérito individual mas pelo esforço de todos (há um poema de Bertold Brecht lindissimo sobre isso!) e de certeza por isso sente cada pessoa que com ele trabalhou como alguém próximo, muito mais importante que todos os vips que foi conhecendo ao longo de uma vida.
Olhei para o Oliveira emocionado. Entre o objecto que me entregou com um sorriso e o acto que praticou não sei qual terá mais valor como prova da sua amizade.
- Está ali a decorrer uma feira de velharias! – disse-me apontando para o parque das bicicletas. – Parece que se realiza ao segundo domingo de cada mês. – Continuou ele. – Estava a passear entre as bancas e deparei-me com um monte destes pacotes todos empilhados! Perguntei o que era e explicaram-me que eram velhas placas de zincografia mas nem sabiam de que jornal nem de que localidade. Comecei a cuscar por curiosidade e no meio de dezenas que me passaram pelas mãos, encontrei esta com o teu pai! Nem sabia quando te viria a encontrar nem tinha o teu contacto mas ia guardá-la até que nos voltássemos a encontrar e dava-ta depois!
Fiquei a olhar emocionado para o Oliveira. Conhecemo-nos há trinta anos mas nos últimos vinte cruzámo-nos umas tantas vezes sempre de forma apressada e casual (sim, eu sei que já vos disse isto mas tenho que o enfatizar!) e agora ali estava um amigo a provar que a amizade não se mede pelo tempo em que estamos juntos nem pela distância a que estamos um do outro, na realidade nem sei como se mede mas sei que consigo reconhecer o tamanho da amizade quando me confronto com ela!
Directamente dos anos 80 para hoje, ali estava um reencontro com o passado da mais bela forma!


Despedimo-nos e eu segui com interesse para a feira das velharias. Não havia mais placas de zincografia que me interessasse mas reencontrei-me com o passado. Para o meu bau de recordações ficaram os dois vinis dos Santa Esmeralda que como recordei anteriormente foram as primeiras músicas a tocar no Sotão (não JP, não encontrei o Disco Amarelo, bem que o procurei!), os dois livros que mais me marcaram na adolescência ‘’Viagem ao Mundo da Droga e ‘’Os Filhos da Droga’’ de Christiane F. e ainda, imaginem uma velha View Master com fotogramas de filmes da Disney e de cidades europeias!


Voltei ao carro pelo cais, vi com satisfação que os barcos estavam todos alugados e que diante da Casa dos Barcos, agora espaço de exposições, mantinha-se a animação de sempre com muita gente.


Foi com tristeza que vi que a minha estátua preferida do parque está agora escondida pela copa de uma árvore e que assim ninguém a vê. Fica ainda mais bela naquele seu recanto-esconderijo mas é uma pena que não a possam desfrutar. Vejam, logo a seguir aos cais, de quem vem do lado da esplanada, a bela estátua. Não lhes direi onde está. Vão lá e percam uns segundos em contemplação, recebendo em troca a paz que emana daquele local.


Sai do parque pelo velho roseiral lançando ainda uma última vista ao velho liceu, do mesmo local vi a mesma imagem que serve de layout a este espaço.


Não foi há trinta anos, não foi ontem. Foi hoje mesmo!






 
PERGUNTAS DE UM OPERÁRIO LETRADO

Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruida,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Sò tinha palácios
Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou as Indias
Sózinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos
Quem mais a ganhou?

Em cada página uma vitòria.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?

Tantas histórias
Quantas perguntas

Bertold Brecht



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