sábado, 5 de junho de 2010

RUA DO JARDIM



Cresci a correr, a diabrar e a saltar na Rua do Jardim. Aquela pequena rua (Alexandre Herculano normalmente chamada de Rua do Jardim), foi como que o meu recreio no pós aulas e em algumas partes das férias, jogávamos horas e horas futebol, ora nas sarjetas, ora tendo as portas de um dos lados da rua e do outro como balizas

Chegávamos por vezes a jogar com balizas na forma das portas dos prédios do mesmo lado da rua, pois os carros não nos deixavam espaço depois de estacionados para as tais jogatanas de portas feitas balizas, isto tudo decorria com o transito normal de carros a passar pela rua.

Tínhamos um grito peculiar, quando saiamos de casa, para brincar na rua, tipo Tarzan. …aliás foi nessa época que começou a passar alguns dos filmes das aventuras do Tarzan do Walt Disney na RTP e decerto foi ai que descobrimos as nossas valências para aquele grito de arrepiar qualquer barítono ou tenor mais medíocre, mas funcionava inacreditavelmente, pois que se alguém estivesse na rua era prontamente respondido, com outro grito parecido mas de duração mais curta, era essa a forma de nos reunirmos e combinar o que fazer nos próximos momentos.

A rua servia de acesso à Leão Azedo e à Heróis da Grande Guerra e possuía no topo (mas noutra rua) uma bomba de gasolina, da BP que nos cativava algumas vezes pela passagem de carros que iam abastecer de combustível que para nós na altura eram incríveis.

Lembro-me de uns BMW pequenos (que mais tarde viríamos a alcunhar de sapos) que tinham um design de chassis revolucionário para a época com duas rodas á frente, mas tendo as de trás, com a particularidade de estarem juntas, formando um conjunto que tinha como função dar direcção ao carro.

Possuía umas portas que abriam de uma forma estranha para a época, abriam da frente para trás que mais pareciam uma cápsula lunar, com um enorme vidro panorâmico que deixava ver os dois apertados e pequenos bancos de cores fortes em que o branco, azul e vermelho faziam a sua comunhão , dando-nos uma ideia do volante de cor branca de que o carro afinal também tinha direcção.

Recordo-me que esse carro ficava, enumeras vezes estacionado na Rua e que nos cobiçou o olhar e o imaginário de tal forma que a dona, uma Senhora alta de rosto escorrido e de cabelos muito bonitos mas por vezes muito despenteados, vestia-se com uns vestidos diferentes onde a cor e os decotes marcavam a diferença, nos apanhou algumas vezes a adorar o carro onde estava estacionado.

As primeiras vezes não achou piada alguma, mas com o tempo e as vezes que lhe ficávamos a guardar o carro•J… ela começou a gostar de nós, tendo inclusive nos oferecido por vezes alguns caramelos espanhóis que era tipo caviar JJ.

Passaram imensos anos até que um dia descobri quem era essa Senhora, o seu nome era Helena Pinto Bastos.….Alguém decididamente fora da época para melhor que facilmente, se notava tal a força da presença da senhora.

Outros dos carros eram os VW baixos e compridos, tipos Porsche, que achávamos engraçados deixando-nos cheios de inveja quando passavam por nós tipo espadas do James Dean, deixando-nos a sonhar com grandes velocidades e grandes rally´s que todos nós imaginávamos.

No inicio da rua existia na altura uma das lojas que principalmente nas segundas-feiras tinha um corrupio de gente que nos chamava a atenção, a loja do avô da Margarida e Vanda Simões.

Nessas segundas feiras, a convergência das pessoas dava-se porque era ali que se vendia, fatos de macaco, botas e fatos para a chuva de borracha, capotes para o frio e chuva e outra roupa de trabalho e agasalho como ceroulas brancas e grossas que marcavam uma das partes da loja, destoando com a sua cor branca no meio de tanto azul de ganga, verde e preto das roupas de trabalho, que estavam pendurados nos cabides altos e nas portas de entrada que davam para as duas ruas.

Essa loja tinha também uma particularidade de vez em quando, viamos entrar pessoas que de modo algum seriam das aldeias que circundavam as Caldas pois vestiam-se de fato e gravata e traziam consigo uma mala, que nos deixava com a pulga atrás da orelha.

Após a entrada dessas pessoas na loja nunca se dirigiam para o balcão mas passavam para trás do balcão ficando horas a falar com alguém que tinha uma secretária que recebia a luz da Rua do Jardim que um vidro de textura martelada deixava passar.

Bom… andámos, rodopiamos, ficamos sentados horas nos carros que estavam estacionados na rua do Tomás dos Santos, até que percebemos que aqueles senhores trocavam moedas e selos, deixando por terra a ideia de que algo se estava a passar e que os famosos detectives da rua do jardim iriam descobrir, não era nada mais que outra vertente de negócio que por ali se passava.

Somente mais tarde começamos a ficar cativados pelos selos que trocávamos entre nós fazendo-nos ir em busca de novidades a correr ao Silva Santos na praça da fruta, uma papelaria que existia ao lado da Frami que tinha um balcão coçado de madeira e resmas de livros mal arrumados atrás do balcão,

Onde se vendi-a uns cadernos que na altura chamávamos de capa de ferro com um senhor já de idade, que com uma paciência de santo, nos aturava nestas idas em busca de selos novos. Ia buscar os seus selos repetidos numa caixinha pequena de papelão dava-nos 10 selos se lhe trocássemos algum que ele não tivesse ele era na altura coleccionador que mais selos, possuía pelo menos que nós conhecêssemos.

A rua apesar de estreita e curta, fervilhava de vida, um pouco mais abaixo, estava a mercearia do senhor Joaquim, onde imensa gente se ia abastecer, sendo tudo “aviado” sem dinheiro, tudo era escrito num livro alto, grosso e estreito.

No final de cada mês as folhas eram riscadas pelo pagamento da divida, esse método era utilizado por grande parte das famílias na altura, era normal irmos buscar algo que faltasse na dispensa em casa e não pagar. A decoração era quase sempre a mesma um balcão com rebuçados e chupa-chupas á vista da criançada, uma balança de cor branca e pratos cromados, com uns compartimentos de madeira e vidro para o açúcar branco e ruço, as quantidades ainda eram pesados a granel e metidos nos famosos pacotes de papel, onde o feijão e o grão ainda era vendido às quartas e onde eu e os meus amigos iamos comprar $50 de bolachas Maria ou torradas (eram normalmente 10) que nos deliciava nos intervalos das tropelias.

Existia também, aliás acho que ainda existe um portão alto em rede pintado de branco e preto, que dava acesso a uma garagem, que era utilizado por nós e especialmente para jogar voleibol ou algo parecido, que nos consumia as energias horas a fio durante horas, os mais fervorosos jogadores desse jogo era eu e o Rui que ainda vive nas Caldas e é cunhado do Paulo Caiado.

Este portão fica paredes meias com a pensão da Dona Alice era um dos pontos daquela rua que me “ocupava” mais tempo, há algumas coisas que continuam bem vivas por aqui •…. O famoso cágado que nunca aparecia mas que sempre viveu por ali, aproveitava o pequeno canteiro que existia entre a casa e o armazém para se esconder e fugir ás tropelias dos Tózés grandes e pequenos e á sobrinha Elsa que não a vejo á pelo menos 30 anos,

Foram horas e horas a jogar ás cartas com todos os que nos desafiavam, há algumas coisas que me recordo, que me cativaram a curiosidade por algum tempo, uma delas era uma antena de rádio tipo mola em material ferroso que ocupava na totalidade do comprimento a parte de cima do túnel que ligava a parte da frente á parte de trás da pensão, por onde nós passávamos, para ter acesso a uma cozinha que era dominada por um fogão a lenha e uma mesa de mármore enorme onde batiam a massa e faziam os melhores rissóis que alguma vez comi na vida.

Essa parte da casa dava acesso então a duas salas de refeições. Uma mais convencional e formal que tinha acesso para a rua, para hóspedes esporádicos e outra que tinha acesso somente pela cozinha onde os hóspedes tradicionais comiam a comida que a Dona Alice, cozinhava.

Lembro-me de um senhor que se chamava Silva que não tinha cabelo na cabeça, e sobrancelhas, mas sempre sorridente nos dizia para nos portar bem, piscando-nos o olho como que a desafiar-nos para o contrário.

Mais abaixo existia uma funerária Neves, que estava quase sempre aberta e nos fazia ver que afinal a vida não é eterna, lá íamos a correr saber quem tinha morrido, claro está que nunca sabíamos quem era, mas era como que uma romaria obrigatória ao ver entrar mais um caixão para aquele carro funerário enorme que possivelmente tinha sido importado dos Estados Unidos,

A Dona Zita tal como a tratávamos (Era para nós fora de propósito tratar alguém por Sr.ª dona) ….estava sempre a dizer, que estão para aqui a fazer, vão brincar , qual quê …de pedra e cal lá ficávamos a olhar par o deslizar do caixão para dentro do carro.

Apesar de um pouco macabro, não induzíamos nada mais, aqueles momentos.Até aqui a rua era mais ou menos tranquila, mas a partir daqui era como que mudássemos de mundo.

Existia na altura um tribunal de trabalho, uma parteira, e um stand da Skoda ( na altura fez um enorme fervor, mas não durou mais de alguns anos ali, sendo substituída pelo Inácio abegão de produtos eléctricos), que coabitavam paredes meias com a taberna do David.

Era nessa parte da rua que quando vinha a época dos Santos Populares, que montávamos a nossa banca, ao lado de um dos locais que era quase obrigatório para nós passar diariamente o sapateiro (adorava ciclismo), tinha uma pequena divisão com uma bancada pequena e quatro bancos pequenos encostados á parede que serviam para as pessoas que iam lá por a conversa em dia pudessem se sentar, seria porventura alguns dos sítios onde se dizia mal, da mulher menos convencional e do regime de um modo mesclado com o futebol onde o Benfica nessa altura não dava hipóteses a nenhum clube.

Mas a possibilidade de ler a bola era para nós um doce e claro, naturalmente por lá ficávamos até o silêncio correr connosco daquele sítio.

Reuníamos algumas das coisas que não queríamos e fazíamos umas rifas para conseguir fazer algum dinheiro extra, Eu (Tó-zé grande) e Tó-zé (pequeno), Berto, Rui da Sapataria, Carlos e mais tarde o mano Zé e o Rui, organizávamo-nos em turnos pois não nos era possível, estar o dia todo naqueles preparos a tentar vender umas rifas a quem passava.

À segunda-feira era sem duvida o mais produtivo, pois as pessoas que vinham das aldeias fazer compras e se deixavam ficar para mais tarde acabavam naquela taberna a beber um copo de tinto pois tinham deixado os seus animais guardados nas cocheiras da subida do chafariz das cinco bicas e tempo era coisa que ainda não era unidade de medida.

Era ai que os esperávamos como que em comissão de recepção da rua e lhes conseguíamos vender duas ou três rifas, muitas vezes os prémios que ganhavam, eram-nos oferecido de novo.

De vez em quando a venda corria mal, pois o nível de alcoolemia era elevado. Mas houve algumas vezes que conseguimos sentar algumas dessas pessoas um pouco maltratadas pelo vinho, na nossa banca a vender rifas, estando nós sempre por perto da outra parte da rua sentados tipo abutres á espera que cai-se do banco….éramos realmente uns artistas nesse campo do negócio.

As pessoas passavam e ficavam incrédulas com a nossa performance… mas passando os santos populares não havia mais emoção, voltando ao normal da rua os gritos á Tarzan e ao mostrar de algo novo que algum comprava com o dinheiro que entretanto ganhávamos.

Havia a partir dessa zona, uma professora que dava explicações que nunca me lembro do nome dela, a casa do Berto e do Tó-zé pequeno eram vizinhos, uma tipografia e uma senhora que detestávamos e que nos culpava de tudo o que acontecia na rua que morava em frente a essa professora que tinha a casa na esquina,

Era problemático o frenesim que a senhora produzia, com os seus ralhetes, quando saia á rua com o seu cabelo armado e os seus óculos de lentes grossas.

No inicio alguns de nós ainda paravam para a ouvir mas depois começou a ser normal, pura e simplesmente ignorá-la o que a provocava de sobremaneira e claro, quando chegávamos a casa já lá estava a nota de culpa á nossa espera

A Tipografia,tinha umas maquinas impressoras que faziam um barulho ritmado com o vai e vêm do braço das máquinas que trabalhavam dias e dias sem parar, empurrando o papel de encontro a um rolo de tinta e uma placa com milhares de caracteres em positivo.

O barulho era incomodativo e nunca nos conseguia aguentar muito tempo.

O Sr. Silva que falei em cima na pensão da Dona Alice, morava por cima dessa tipografia.

Mais abaixo era o armazém de produtos de drogaria que tinha sempre na parte de fora da porta umas mangueiras para guardar um lugar onde as carrinhas paravam para descarregar e carregar para a distribuição do dia seguinte.

A Dona Célia, dona desse armazém era a nossa preferida, adorávamos a senhora apesar de haver uns ralhetes bem metidos de vez em quando. Mas claro não havia bela sem senão e por cima do armazém morava mais um dos detestáveis da rua

….Um senhor que sempre nos culpou de um vidro partido que nunca o fizemos e nem força teríamos para pontapear a bola aquela altura, o Berto era o alvo preferido dele, pois era o mais gozão de todos nós e claro, brindava-o com algumas imitações que ele começou a descobrir e que não achava piada nenhuma.

A rua ainda tinha um depósito de produtos farmacêuticos, um armazém de cereais cujo dono tinha uma filha de nome Clara que de vez em quando brincava connosco e que ombreava de ombro com ombro com os rapazes.

Antes da esquina e junto á Super América existia outro sapateiro o Sr. Carlos uma pessoa que tinha uma presença enorme e que tinha o atelier cheio de posters de equipas de futebol e o os famosos bancos em que as pessoas passavam algumas horas ou minutos no mal dizer.

Foi o Sr. Carlos talvez o primeiros nas Caldas a ter uma mota adaptada á sua deficiência que lhe inibia uma locomoção normal.

Mas á algo que sempre permaneceu, no meu imaginário e também se passava nessa zona da rua, na altura do natal o Abílio Flores mandava distribuir balões que tinham a publicidade do Gás Móbil, pela cidade com um pai Natal.

Essa personagem fechava-se num pequeno armazém perto do sapateiro Carlos e enchia centenas de balões com hélio, até ai tudo era normal, mas é que ele também dava uns click`s que faziam um barulho que simbolizava o barulho que o novo sistema de regulação do gás das garrafas de gás Móbil fazia, diziam eles que era um simples click .

Eram azuis-claros e tinham a cara alegre da campanha do Gás móbil, esses clicks fizeram-nos esperar horas a essa porta para cravar ao pai natal os tais click, s com que infernizávamos os nossos pais em casa e os amigos na rua.

Existia ainda o Dr. Lamy a quem chamávamos arranca dentes, a loja do pai do Badaró e a famosa Super América e as suas botas de cano alto pretas com pêlo por dentro, que a minha mãe me obrigava a usar no inverno.

Foram anos de brincadeira, que naturalmente tiveram o seu fim com o avançar da idade, uns conseguiram surfar e usufruir do gosto da vida, outros afundaram-se e resistiram á morte, estando hoje numa dinâmica dita racional da vida….

A todos os Tózés, Berto, Rui´s, Mano Zé, e outros que apareciam por vezes na rua para brincaram comigo e me deram o gosto de sorrir com vocês…um grande abraço.



(post do António José Albano)


Nota do Paulo Caiado:

A D. Helena Pinto Bastos era a proprietária dos referidos automóveis (BMW-Isetta e VW Karmann Ghia) e da Mansão da Torre. Era conhecida pela ‘’cabelos no ar’’ pela sua cabeleira sistematicamente despenteada e pelo seu rápido andamento nos seus afazeres diários. Uma figura!
O armazém a que o Albano se refere e cujo portão fazia de baliza, ao cimo da Rua do Jardm, era o depósito das bananas que o avô do Rui comercializava e onde estas amadureciam.
A ‘’Clara’’ do silo de cereais não seria antes ‘’Teresa’’? Eu também vivi nessa rua, por cima do silo até aos meus 10 anos e lembro-me dela a jogar melhor que muitos rapazes!







1 comentário:

Francisco Baudouin disse...

Eu passava férias na Rua Fonte do Pinheiro em frente da Rua das Flores. Sou "Àgua morna" à 61 anos. Será que alguém conheceu Joaquim dos Santos - ferroviário da CP, era o meu avô. Gostava de ser contactado: rodagem@gmail.com