quinta-feira, 10 de junho de 2010

OS DIAS E AS NOITES



Todas as histórias começam com era uma vez… mas a vida não era, a vida é, vive-se a cada momento… Com este pensamento ocupava a sua mente enquanto ouvia música e passava por uma cidade que em nada se assemelhava com a memória que insistia em preservar, de umas árvores há muito abatidas pela ganância do cimento. Afinal que personagem representava naquela realidade em que cada dia se sentia mais desajustada? Respostas sabia que não encontrava, e, muito menos, que alguém lhe daria! Conduzia o carro de forma automática, como acontece a quem percorre as mesmas estradas há anos, alheada dos locais por onde passava, que eram simultaneamente os da sua vida e aqueles em que se sentia uma estranha.
O tempo era algo estranho, um conceito tão concreto e ao mesmo tempo tão abstracto. Olhou para o relógio do carro e percebeu que circulava sem destino, simplesmente a poluir o ambiente e a rodar, como se a sua cabeça pudesse rodar com os pneus do carro.
Parou à porta de casa, sem saber porquê, mas provavelmente porque aí parava sempre, ou mesmo porque não havia mais nenhum local para parar. Aquele era o seu espaço, onde, por opção, cada vez permanecia mais tempo sozinha. As pessoas eram o eterno dilema da sua vida, com uma constante relação de atracção e afastamento. Eternamente a fascinariam pelas suas surpresas, pelas suas contradições. Ela própria era um belo exemplo dessa raça humana, que vive uma vida inteira procurando um sentido para a sua existência. E teria de existir um sentido? A vida não existiria simplesmente para ser saboreada, o melhor que cada um consegue em cada momento? Afinal todos corriam atrás da felicidade de forma tão ocupada que os momentos de prazer eram habitualmente vividos de modo angustiado, perdendo o seu prazer, e tornando-se em insatisfação incompreendida… Não tinha o privilégio de ser detentora de uma fé por um ser superior, metafísico, o que acreditava dava conforto à vida, aos vazios que todos sentem em alguns momentos.
Foi a pensar nessa fé que, após longas horas de insónia, acabou por adormecer.
Adormecer e descansar apenas eram sinónimos em algumas noites pontuais, e essa não foi uma delas. Sonhou com o que a atormentava, acordou, o corpo estava cansado, como se não fosse capaz de verdadeiramente repousar.

Quando o telemóvel tocou, para despertar, a sensação era de que sempre estivera desperta. Deixou-se ficar estendida, a pensar o porquê de todo este turbilhão de sentimentos que a invadiam, o porquê de não conseguir dar uma volta por cima e tornar-se numa outra pessoa, embora não soubesse bem em quem, ou em quê, concretamente. Só identificava o mau estar, sem encontrar soluções. Por enquanto procurava ocupar a mente com tarefas práticas, e com música, mas sabia que isso em nada alteraria esta sua dificuldade de viver esta vida que percorria. Era o preço de escolher estar sempre sóbria, pensava por vezes… O desejo de se alhear era cada vez mais constante, mas sabia que esse milagre não existe, por isso era um pensamento como outro qualquer, sem qualquer consequência.
Levantou-se e dirigiu-se para o duche. Muitas vezes o duche significava um desejo de limpeza, como se a pudesse libertar… fazendo-lhe recordar os relatos das pessoas violadas que se esfregam sucessivamente como que desejando que a água lhes retire o que viveram, o que sentiram… mesmo sabendo a impossibilidade de tal acontecer! O desejo de não existir para não sentir, tantas vezes ouvido em relatos de outras vidas… E as vidas que trazia dentro de si eram realmente intermináveis, e difíceis de digerir, eram sofrimentos e pequenas alegrias a que ninguém dera valor.
Saiu do duche e pensou onde estava o seu positivismo que lhe orientava os princípios de vida? Curioso, há muito que tinha uma atitude de vida positiva, mas os seus anos de zanga prevaleciam na imagem de si, nos olhos dos outros a maior parte das vezes via-se a mesma pessoa zangada, e esse retorno incomodava, minava interiormente. Então o que fazer? Nada, era a resposta imediata. Sentia-se como diz o poeta, cansada, cansaço só pelo cansaço…
A sua vida fora essencialmente passada naquela cidade, naquele espaço físico, mas as pessoas sempre tinham entrado e saído, aparecido e desaparecido… permanecendo na sua maioria apenas na sua memória, nas suas recordações, procurando guardar de cada uma os melhores momentos, aquilo em que contribuíram para que se sentisse uma pessoa melhor. E será que se tornava verdadeiramente uma melhor pessoa? Convencia-se que sim, de que isso sucedia com o passar dos anos. Mas, por vezes duvidava, de si, da pessoa que era, do sentido da sua vida. Quem era afinal? Um personagem diferente, consoante os olhos de cada um. Para uns uma estranheza, uma complicação difícil de entender, para outros uma insatisfeita eterna, para outros ainda, a força que em alguns momentos precisavam… e mais uma infinidade de atribuições. E afinal quem se sentia ser? Por vezes não o sabia, e agora era um desses momentos.

Vestiu-se sem qualquer cuidado com as peças de roupa que escolhia. Como era possível sentir tanta capacidade de vida dentro de si, de criar, de fazer, e ao mesmo tempo tanto desejo de desistir, de falta de sentido para o que quer que fosse? Só queria desaparecer por uns tempos e quando voltasse, ser alguém menos complicado. Queria o impossível, e ao pensar nisso, sorriu por entre o choro convulsivo que não parava. Chorar era como despejar a dor. A dor de existir, de sentir, de um vazio que nem ela própria entendia, a dor pela dor. Pelo menos as suas dores de estômago, essas eram físicas, socialmente aceitáveis! Quando pensou isto sentiu o peso da palavra socialmente. O peso de estar inserida nesse social que a maioria das vezes acreditava em pressupostos muito diferentes dos seus. Estranho, porque também ela crescera nesse mesmo social! Em que momento passara a estar à deriva desse rio que todos pressupunham que naturalmente percorresse. Em que momento passara a viver um rafting em quedas de água? Sorria com esta analogia, já que essas adrenalinas nunca foram as suas, era o que se chama uma medrosa sem espírito de aventuras dessas. Aliás, pensou, como é que se pode transmitir uma imagem de controlo de todas as situações, tornar-se incómoda por se transmitir essa forma de estar, e, interiormente se sentir numa tempestade, sem vislumbrar um farol que anuncie um porto de abrigo?!
Enquanto se ocupava com tarefas manuais, procurava perceber o impercebível, porque construíra um personagem fortaleza, frequentemente invasivo da vida dos outros, que o viam cheio de certezas, quando desde sempre se lembrara de si como cheia de dúvidas e de carências, até mesmo aquilo que vulgarmente se chama de lamechas?! Esta dúvida trazia dentro de si desde que percebeu que afastara de si alguém que amava, e acabara sufocado pela sua estranha forma de amar. Depois desse momento muitas vezes julgou ter mudado, a imagem que transmitia aos outros, e a sua estranha forma de amar… e mudara, dentro de si sentia as suas mudanças, mas que na prática se traduziam em formas semelhantes de se dar a sentir aos outros! Que estranho personagem era este, que sem qualquer dúvida transmitia para os outros, e com quem afinal pouco se identificava? De tanto olhar dentro dos outros perdera a possibilidade de olharem dentro de si? Ou de tanto se obrigar a não se revelar aqueles dentro de quem olhava, passara a ter uma barreira para com aqueles que desejava a olhassem e entendessem no seu interior? Tinha a capacidade de atrair as pessoas, e depois de as sufocar, de as afastar. Este era um facto que verificava constantemente.
Parou as suas tarefas, e sentada, a beber um café, pensou na importância da memória e das palavras ditas. Porque teria esta capacidade de memória de elefante, como lhe chamavam frequentemente? E porque não seria capaz de conter as palavras, as frases, mesmo quando antecipadamente pensava que se dissesse determinado comentário iria criar confusão no seu entendimento com os outros? Mais uma vez, pensava no tal do botão do off que também no seu discurso verbal lhe seria útil. E, repentinamente, ocorreu-lhe que o botão do off está dentro de cada um de nós, como diria o Fernão Capelo Gaivota, personagem com que se identificara desde que lera a sua história na adolescência… E, então “voou” por uma série de perguntas que a inquietavam. Porque se havia de repetir o que o bando desde sempre fez? Porque não ir mais além, dentro de nós? E porque se assustava “o bando” por alguém ser diferente? Porque a diferença do que se instituiu ser a norma tanto incomodava “a norma”? Sentia isso no seu trabalho, o seu afastamento por algum tempo, confirmando que tanto havia para se fazer, tinha desafiado o comodismo e o medo instituído. Por vezes, sentia que os outros não entenderam o seu voo de liberdade como exclusivamente um processo seu, mas também como mais uma vez estando a pôr em causa os que sempre falaram e nunca se ausentaram. Sentia isso na sua vida, na forma como geria os seus acontecimentos de vida e nas escolhas que fazia. Porque incomodaria tanto os outros as suas escolhas não corresponderem à desejabilidade do “bando”, quando em nada interferia com as suas vidas? Porque lhe faziam sentir esse incómodo? Não teria o direito de “voar” livremente procurando viver os seus momentos de felicidade? Gostaria de que o incómodo que lhe transmitiam não tivesse a capacidade de a incomodar, de a condicionar.
Com o Fernão Capelo no pensamento, e a consciência do “peso do bando”, nessa noite deitou-se, desejando o impossível, a oportunidade de ser livre, de viver momentos de felicidade, de rir à gargalhada até às lágrimas, de gostar e ser uma pessoa gostada… Dias e noites!

(post da Cláudia Tonelo, escrito em Maio 2005)



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