sábado, 19 de junho de 2010

AOS MEUS COLEGAS DA ESCOLA PRIMÁRIA






À nossa Professora D. Elisa


Vou atrasar o Relógio do Tempo 36 anos.
...
As memórias que não perdi
Ficarão enternamente a sorrir
Dentro de mim….

Quando penso nos tempos da escola primária há uma data que inevitavelmente me ocorre de imediato. 24 de Abril de 1974.
Como era habitual a família estava reunida em casa. Os meus pais, eu e o meu irmão que tinha 4 anos. Já teríamos jantado quando a emissão da RTP encerrou passando a dar lugar ao Hino Nacional. Lembro-me do murmurinho que se gerou lá em casa nessa noite, dos movimentos invulgares aquelas horas no prédio onde habitávamos, da agitação dos meus pais… A vizinhança estava em alerta. Percebi que era algo grave que se estava a passar para lá das nossas paredes, senti o medo que pairava no ar e ouvi referências a tropa e quartéis. Que confusão que estava a ser para a minha cabeça de criança…
Foi esta a primeira noção que tive da Revolução do 25 de Abril, a Revolução dos cravos.
Bom, parece que nem tudo foi assim tão mau. No meio de tanta inquietação descansei quando soube que no dia seguinte não teria que ir à escola!

Estava então a frequentar a quarta-classe. Vivia na Capitão Filipe de Sousa, quase vizinha à célebre Rua do Jardim (agora tenho pena que os meus pais não tenham optado por viver no quarteirão de baixo para ter podido participar em tantas brincadeiras que já se falaram aqui, não imaginava que aí se passavam tantos acontecimentos como os que têm sido relatados aqui noutras “estorias”…) e a minha escola ficava no prédio ao lado da entrada da Rodoviária que fica hoje em dia do lado dos CTT, no último andar.
Refiro-me à célebre escola da D.Elisa da qual muitos de vós se devem recordar.
Era uma das Escolas primárias mais conhecidas das Caldas, reconhecida pela sua qualidade de ensino e rigor na obtenção dos conhecimentos.
A primeira e segunda classes tinham aulas de tarde, a terceira tinha aulas de manha e a quarta, de manha e de tarde. Ou seja, os alunos da quarta classe, durante a manha tinham secretaria para sentar mas à tarde ficávamos sentados nas escadas que iam do segundo andar para o sótão. Pois, porque a sala de aula era nas águas-furtadas do prédio. Tínhamos óptima iluminação natural que o saguão nos fornecia mas eram horas infindáveis de rabo poisado na escadaria de madeira, às tantas já não tínhamos posição, nem sentados, nem deitados, nem esticados, nem de forma nenhuma já sustentávamos os nosso corpinhos…E era nesses preparos, nessas posições tão incómodas que se decoravam nomes de rios, nascentes, afluentes, serras, estações de caminhos-de-ferro, ai decoravam, decoravam… Disso ninguém tenha as menores dúvidas! E é para aí que a minha memória me leva.
Quem concluiu a 4ªclasse com a D.Elisa, (com direito a Exame na Escola Primária do Bairro dos Arneiros e fizemos um brilharete!) seguramente teve o trabalho facilitado nos anos seguintes e por isso lhe reconheço todo mérito apesar das suas praticas de ensino já serem contestadas à época por alguns. Mas que dava resultado, sem duvida! A matéria ficava na ponta da língua.

Esse ano foi emocionalmente complicado para mim.
No inicio do ano lectivo, dirigi-me para a carteira que tinha utilizado no ano anterior. Recordo-me de o fazer como se tivesse sido há pouco tempo.A carteira ficava do lado esquerdo a meio, ao lado do corredor que dividia a sala a meio. Eram carteiras de madeira inteiriças, com a secretária unida ao assento, para dois alunos. A colega que a tinha partilhado comigo anteriormente chamava-se Violante e morava na Estrada da Tornada. Era uma miúda morena, bem comportada, pacata, ideal para fazer parelha comigo, que era um pouco mais rebelde e talvez por isso nos entendêssemos lindamente. Foi essa a imagem que me ficou dela.
O lugar ao lado do meu estava agora vazio. Ainda esperei por ela, olhei para a porta repetidas vezes na esperança de a ver entrar. Não me apetecia nada ter que repartir a correnteza curta e estreita da madeira com outra menina. Era a companhia dela que eu desejava nesse momento. Soube nesse dia que a Violante tinha sido atropelada mortalmente na Estrada que a vira crescer. Não sei descrever o sentimento que me invadiu nessa hora. Foi um misto de emoções, penso que foi a primeira vez que me confrontei com perda provocada pela morte de alguém que de alguma forma nos é querido. Afinal as férias grandes tinham-nos afastado, eu já não a via há alguns meses, eu não era da família, não convivia assiduamente com ela, mas essa menina com quem dividira a carteira era a minha companheira de aula, deitávamos o olho aos trabalhos uma da outra, trocávamos material escolar…Enfim, trocávamos afectos … Foi duro perceber e interiorizar que a Violante não iria estar mais connosco, nem em qualquer outro lugar visível por nos.
Benditos semáforos que mais tarde resolveram colocar nessa malfadada estrada e que certamente evitaram que mais vidas aí fossem ceifadas. Senti uma tristeza profunda nessa altura e ainda hoje a sinto sempre que me ocorrem pensamentos dessa época da minha vida. Nunca esqueci essa menina, ficou para sempre viva dentro do meu coração. O irmão dela era o Luís, também frequentava a mesma Escola e passou a trajar de preto e com semblante carregado. Anos mais tarde reencontrei-o a explorar uma tabacaria que chegou a existir no Modelo, à entrada do lado direito.
Nessa altura muitos dos meus dias terminavam na Espingardaria Mário com a Anita (filha do Sr.Mario) que também era minha colega ou com a Elisa Oliveira (filha do Vasco Oliveira).
O Ramiro “do oculista” e o João Paulo Piloto eram os rapazes com quem eu mais me lembro de conviver na escola primária. Os irmãos Cordeiro, também passaram por lá. Recordo-me que o Piloto, como lhe chamávamos, e o Eduardo (que hoje exerce na PSP das Caldas) eram uns alunos brilhantes. Lembro ainda que o Eduardo teve que repetir a 4ª classe porque não tinha idade para frequentar o ciclo preparatório. Eram outros tempos…
O marido da D.Elisa, o Sr.Feliz, era viajante como se apelidavam nessa altura os vendedores. Já não me recordo bem de quê mas tenho uma ideia que negociava em máquinas. Quando subia as escadas para resolver algum assunto com a D.Elisa era uma festa para nós.
Seriam esses talvez os únicos momentos em que o silencio se quebrava, em que podíamos trocar algumas palavras entre nós e os mais atrevidos faziam passar entre as carteiras trocas dos primeiros bilhetinhos de amor, de papelinhos preenchidos com versos, coraçõezinhos pintados,… enfim verdadeiras provas de amor puro e inocente…


O relógio acertou a hora.
E a cadencia mantêm-se…
O tempo não perdoa.

(post da Élia Parreira)

14 comentários:

Cecilia (Sissi) Martinho disse...

Nunca esqueçemos quem nos ocupou o coração, Élia. Gostei muito de te "ler". Beijos!

Paulo Caiado disse...

Bem, est... Ver maisá uma pessoa fora e sem acesso ao fb e quando chega ''apanha'' logo com uma ''memória''destas!
Que prazer é ler um texto teu, Élia. E que bom para começo! Sim, porque agora não podes parar, queremos mais memórias tuas e aposto que são muitas.
Lembro-me bem do sotão da D. Elisa, não só porque conheci toda a ssua familia mas também porque os meus primos frequentaram a sua escola e eu de vez em quando visitava-os na escola. Que diferença para a amplitude de espaços do colégio... mas o mesmo rigor e por certo competência no ensino. Pelo que conheci dos meus primos que depois me acompanharam no mesmo percurso escolar a sua preparação era idêntica à minha e esta eu sei que era alta pois não tive dificuldades no ciclo preparatório.
Era tão bom que outros seguissem o teu exemplo e recordassem os seus tempos da primária. Seria um bom começo antes de escreverem sobre a sua adolescência. Cá os esperamos!

Élia Parreira disse...

Tal como ja referi numa outra circunstancia, a fasquia da escrita come... Ver maisçou e manteve-se alta, portanto é natural que exista algum receio em escrever as nossas "estorias".Eu ja dei o exemplo, o importante é transcrever as emoçoes que trasportamos ha tantos anos e que têm pontos de interseçao comuns entre tantos de nós.Relembramos assim locais e pessoais que fizeram parte das nossas Vidas.Cada um terá a sua forma pessoal de o fazer.O importante é participarmos e crescermos com a partilha das nossas memórias!Escrevi esta "estorinha" motivada pelo prazer que me foi dado ao ler tudo o que ja se postou aqui.Comecei pela época em que emigrei para as Caldas, um dia destes talvez desenvolva outros capítulos...

Paulo Caiado disse...

Isso mesmo. O importante nestas baladas é a música, não a letra!

Pedro Caiado disse...

Lembro-me bem desse momento em que nos foi anunciado que a Violante n... Ver maisão voltaria! Também me lembro que a a determinada altura a Dª Elisa arranjou uma ajudante (não me lembro do nome) que em vez de dizer "Chíu" dizia "Pchu" e nós nos ríamos desalmadamente com isso..:-)
Bons tempos de ensino. Nunca um aluno da Dª Elisa chumbou no exame da 4ª Classe. Lembro-me que no final do meu exame - lá nos Arneiros, a Dª Elisa me ofereceu uma bola de berlim em jeito de prémio.
Os melhores momentos eram de facto as visitas familiares.... a do Sr. Feliz (que também era árbitro) e as do Tó (?), o filho da Dª Elisa. Esse conseguia virar a mãe do avesso e para nós eram momentos sublimes :-)

Élia Parreira disse...

Obrigada pela "achega" :).So me lembro de uma ajudante, chamava-se Sao.E no texto esqueci-me de referir que no final do ano lectivo ela levava os alunos da 4ª classe a passar um dia na sua casa de ferias na Foz com direito a praia e tudo!Recordo-me agora tambem das visitas do Tó!

António J F Albano disse...

Finalmente , li este texto com tempo... essa escola, seria a que estava por cima do Abilio Flores,??
Lembro-me do aglomerado de miudagem, perto da uma da tarde.
e da cor do predio sen... Ver maisão me engano de um verde esbatido pelo sol com umas janelas brancas...era o tempo dos click da Mobil :):)..
Finalmente o relógio deu o sinal para nos mostrares um pouco da tua vida...Gostei de te ler e se soubesse terias sido bem vinda nas brincadeirasss :):)...do quarteirão :)...
Não esepres que o relógio tenha de actuar outra vez :)..

Paulo Caiado disse...

Os click da Mobil! :) Aposto que a maioria nem se lembra mais disso!

Nuno Aniceto (Parrila) disse...

Em relação ás verdadeiras escolas primárias (como se refere a de Dª Elisa), não esquecer ou mesmo referir a Celebre Prof Dª Joaquina (Quem se recorda? Vá lá! ), que além da fama no nome, qualidade, tb conhecida pelas suas duas "IRMÂS" (A Fina e a Grossa) Réguas (Ai aiai), e conto-vos era uma grande concorrencia para o seu acesso, Quem se Recorda? Vá Lá pessoal !!!!!.....

Luís Lamy disse...

Tive o prazer de frequentar as três escolas (D. Perpétua, D. Elisa, D. Maria Joaquina) que funcionaram como pré-primária ou tempos livres e sobrevivi. A D. Maria Joaquina era muito democrata "comiam" todos dizia e para exemplificar dava uma tapa no "carola" que estivesse mais próximo, que nem pestanejava. Tb ouvia falar na "escola dos burros" que acho que ficava ao pé da estação ou coisa assim, não sei se realmente existiu ou era mitologia?

Pedro Adam disse...

Pois amigos, eu sou dos que fez a instru... Ver maisção primaria na famosa Prof. Maria Joaquina Rainho.
Para quem não sabe era uma escola particular com fama de ter uma "boa professora".
Na verdade era mais ou menos o terror da criançada, a sala junto à cozinha da sua casa particular na rua da Esperança era a "sala de aulas", havia aulas o dia todo sem intervalo ou recreio (os que andavam de manhã tinham de ir de tarde e vise-versa).
A agilidade e facilidade com que DIARIAMENTE usava as réguas (fina e grossa), as bofetadas que ainda hoje me recordo, as cenas de violência por vezes brutais que hoje fariam certamente parte de um qualquer processo crime, são coisas que não posso esquecer.
Também me recordo (menos vezes) que para quem sabia, havia uns rebuçados comprados na mercearia da D. Capitolina, e umas medalhas para os melhores alunos.
Embora reconhecendo que todos nós estaríamos mais bem preparados que a grande maioria dos alunos de outras escolas, não posso nem tenho boas recordações da minha instrução primaria.
Todos nós, e fomos muitos, sobrevivemos! Paz à sua alma ......

Rui Jorge Romão disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rui Jorge Romão disse...

Élia:
É sem surpresa que te leio. Sempre achei que enchias a tua vida de inúmeras histórias, apesar de termos falado poucas vezes (e essas poucas vezes muito condicionadas por assuntos profissionais).
Pelos vistos, ainda te "apanhei" na D. Elisa, uma vez que entrei para a primeira classe em 1973. Contudo, não me lembro de ti por lá.
Mas permite-me complementar algumas recordações daquela escola. Por exemplo, a quantidade de colegas que a meio da aula, na perspectiva de saborearem a mítica régua da D. Elisa, fugiam da sala. Lembras-te das vertiginosas perseguições que se seguiam escada abaixo? E a rapaziada que, invariavelmente todas as manhãs, era arrastada escada acima pelos pais ou irmãos mais velhos, carregando uma enorme angústia na mala da escola?
Quanto à famosa régua, li algures num site sobre arqueologia que a dita é dos artefactos mais procurados nos sótãos caldenses.
E a rica biodiversidade daquela sala de aula? Havia os burros, os camelos, os cágados, as lesmas e até um cão decrépito chamado "snoopy" (não sei se és do tempo do "joni"?) Lembras-te que a meio da manhã alguém saía para comprar bolos na marisol a vinte e cinco tostões cada (pouco mais de um cêntimo)? Lembras-te da casa de banho com clarabóia? Lembras-te, no inverno, da quantidade de samarras alentejanas que se amontoavam nos cabides à entrada? Lembras-te das sovas que alguns colegas levavam? Aqueles colegas que bloqueavam com o medo e por isso levavam mais.
Eu lembro-me de brincar ao Espaço 1999 nas arcadas do Abílio Flores (onde agora é... uma loja chinesa). Lembro-me do Pedro Simões, do Fernando Faria, do Gui, do Rogério, do Paulo Alexandre, do Tirró, do Filipe, da Elsa, da Leonor, do Luís Dória, da Helena e da Teresa Caetano.
Esta foi a minha escola primária durante os quatro anos, com direito a exame final (escrito e oral) na escola do bairro da ponte, num dia de chuva torrencial. Quem nos levou de carro?... O Sr. Feliz, claro!
Apesar de tudo consegui desviar-me dos pingos de chuva e passei os quatro anos sem tráumas, mas conheço pessoal que ainda passa naquela zona pelo passeio oposto...
São apenas recordações, não são Élia?

Carla Rainho disse...

Nuno, fico feliz por recordares a minha avó, ela que também (embora não com os métodos de hoje) foi, na minha opinião uma excelente professora! Só para saberes ainda tenho a régua (a grossa), é uma recordação que me acompanha.

Eu sei que ela era muito rigorosa e batia...mas quando chegávamos a outras escolas facilmente os professores identificavam onde tínhamos feito a escola primária...

Pedro, espero que não te recordes só de coisas menos boas, também havia momentos divertidos...eu lembro-me de brincar na rua com os alunos (sendo eu mais nova do que eles).

Um beijo e obrigada pela lembrança Nuno.